Manuel Maria
de Barbosa l'Hedois du Bocage (1765-1805) foi o maior representante do
arcadismo português. A sua infância foi infeliz. O pai foi preso quando ele
tinha apenas seis anos de idade; a mãe faleceu quatro anos depois. Ingressou no
seminário para ordenar-se padre, mas abandonou o projeto e com 16 anos
alistou-se na Escola da Marinha Real, onde fez estudos para tornar-se
guarda-marinha. Em 1786, embarcou como oficial da marinha para a Índia, fazendo
escalas no Brasil e em
Moçambique. Foi depois escalado para Damão, mas desertou em
1789, embarcando para Macau. Foi preso pela inquisição, e na cadeia traduziu
poetas franceses e latinos. A década seguinte é a da sua maior produção
literária e também o período de maior boêmia e vida de aventuras. Ainda em 1790
foi convidado e aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou
o pseudônimo Elmano Sadino. Pouco tempo depois já escrevia ferozes sátiras
contra os confrades. Em 1791, foi publicada a 1.ª edição de seu livro Rimas.
Em 1797, foi preso novamente sob a alegação de ser “desordenado nos costumes”.
Ficou aprisionado no Limoeiro até o final desse ano, tendo depois dado entrada
no calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí ficou até 17 de fevereiro de 1798,
tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres
Oratorianos de São Filipe Neri, depois de uma breve passagem pelo Convento dos
Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu
comportamento e começou a trabalhar seriamente como redator e tradutor. Sobre
esse episódio, comenta Marisa Lajolo: “Acusado de heresia, foi implacavelmente
perseguido, julgado e condenado, ficando na prisão por algum tempo. Ao
recuperar a liberdade, graças à influência de amigos e com a promessa de
converter-se, o poeta, já velho, abandonou totalmente sua antiga vida de boemia
e zelou, até seus últimos momentos, por impor a seus contemporâneos uma imagem
nova: a de homem arrependido, digno e exemplar chefe de família”. Bocage só
saiu em liberdade no último dia de 1798. De 1799 a 1801 trabalhou
sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro,
politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos
trabalhos para traduzir. A partir de 1801, até à morte por aneurisma, aos 40 anos,
viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da
travessa André Valente. A 15 de Setembro, data de nascimento do poeta, é
feriado municipal em Setúbal.
Contexto histórico:
1750 D. José
assume o trono português e o marquês de Pombal, a Secretaria do Estado.
1755 Um grande
terremoto abala Lisboa; o marquês de Pombal, aproveitando-se da necessária
reconstrução de Lisboa, assume plenos poderes.
1755-1777
Implantação das reformas pombalinas, com destaque para a laicização do ensino.
1777 Morte de
D. José. Assume o trono a rainha D. Maria I. Pina Manique, nos anos seguintes,
irá ganhando poderes e revogando as medidas pombalinas.
1789 Revolução
Francesa.
A respeito
dessa época, escreve Marisa Lajolo:
“O século
XVIII termina na Europa com a vitória das Luzes. Mas encontra Lisboa com as
luzes apagadas ou bruxuleantes em salas secretas. (...) Enquanto na França
partiam as ondas vermelhas da Revolução, Portugal perpetuava o pantanal
cinzento do absolutismo e das atitudes inquisitoriais da Mesa Censórea e dos
calabouços destinados aos maçons e descontentes”. Após a ascensão do marquês de
Pombal, acontecem algumas mudanças: “Pombal combateu ferozmente os jesuítas,
expulsou-os do Império e transferiu o poder censóreo da Inquisição para o
Estado. Laicizou o ensino, procurou estimular as atividades manufatureiras,
reforçou o poder mercantil e o monopólio colonial luso através das companhias
de comércio, ao mesmo tempo em que renovava a universidade e dava poder a
letrados que comungavam com ele o credo racionalista. (...) “Mas Pombal não
teve êxito ao romper a dependência diante dos britânicos. Portugal nunca dera
ensejo à formação de uma burguesia minimamente poderosa, de ofícios, indústrias
e cabedais financeiros que pudesse servir de base às reformas pombalinas. Ao
contrário, a liderança na sociedade portuguesa continuava nas mãos de uma
aristocracia cortesã, habituada ao dispêndio inútil, a quem Pombal não combateu
com a devida eficácia, por não dispor de outros apoios políticos. Assim, a
política econômica de Carvalho e Melo acabou por repetir práticas de um século
atrás.” (...) “Por outro lado, o marquês não era tão ‘ilustrado’ quanto seus cortesãos
queriam fazer crer. Através da Real Mesa Censória, manteve a proibição das
obras filosóficas de Spinoza, Hobbes, Voltaire, Diderot e até mesmo da Nova Heloísa de Rousseau.”
Com a morte de
D. José I, em 1777, e a ascensão da rainha D. Maria I ao trono, Pombal cai em desgraça. D. Maria
I foi a primeira rainha reinante em Portugal. Seu primeiro ato como rainha, iniciando
um período que ficou conhecido como a Viradeira, foi a demissão e exílio da
corte do marquês de Pombal. Ela perseguiu a maçonaria e concedeu asilo a
numerosos aristocratas franceses fugidos da Revolução Francesa. Em 5 de janeiro
de 1785 promulgou um alvará impondo pesadas restrições à atividade industrial
no Brasil. A rainha D. Maria, a Louca, tem a sua demência reconhecida oficialmente
em 1795, quando o reinado passa para o príncipe-regente, o futuro D. João VI.
No plano
internacional, conforme escreve Lajolo, “a Inglaterra continuava a dominar a
diplomacia e os portos lusitanos, constrangidos a impedir, por exemplo, o
acesso dos barcos dos Estados Unidos (...). D. Maria I integrou a aliança
contra a França revolucionária, envolvendo-se nos combates da difícil campanha
militar do Rossilhão, em 1792. Os gastos com o pobre exército português
abalaram ainda mais as combalidas finanças do Estado: o ouro brasileiro se
esgotara, mercê de uma exploração gulosa e irracional. E as finanças pouco a
pouco se esvaíam, pois a Corte não parava de despender dinheiro em diversões
fúteis”, como o gasto de 250 mil francos por mês só na manutenção da sala de
ópera do palácio.
SOBRE A
POESIA DE BOCAGE
Marisa Lajolo
escreve:
“Analisando-se
alguns aspectos da poesia oficial e não-censurada de Bocage, observa-se que boa
parte dela é composta de longos poemas circunstanciais e desinteressantes, que
celebram acontecimentos (nem sempre relevantes) do tempo do poeta. Neste rol
incluem-se, por exemplo, poemas dedicados ao nascimento da rainha Maria Teresa
(...) ou homenagens a esta ou àquela senhora fulana. Mas o convencionalismo
desses poemas todos não se limita à sua carga bajulatória. São poemas
convencionais também por seguirem de perto (...) as normas e regras da poesia
da época. Assim, copiando as lições dos mestres gregos e latinos, já traduzidos
e adaptados à sensibilidade da Europa setecentista, esses poemas usam e abusam
da mitologia, ou, melhor dizendo, de expressões mitológicas (...). Esse código
mitológico torna o Bocage destes versos quase ilegível para o público de hoje,
absolutamente desabituado a tais referências olímpicas. (...) As alusões mitológicas
nesta poesia do século 18 são impostas pela convenção poética e se transformam
num código rígido, em clichês e estereótipos que não correspondem a nenhum
sentir profundo.”
As referências
mitológicas usadas por Bocage são amplamente usadas na poesia do Arcadismo,
assim como a fuga das cidades (fugere
urbem), o bucolismo (idealização da natureza e da vida pastoril), o
epicurismo, os temas do amor e da solidão, a busca do prazer no momento
presente (carpe diem, “aproveita o teu dia”), o racionalismo, a clareza,
equilíbrio, harmonia e objetividade. “Nem sempre, porém, Bocage foi um perfeito
árcade”, escreve Lajolo. Muitos críticos consideram-no um pré-romântico. O
pré-romantismo de Bocage consiste numa primeira ruptura, numa primeira rebeldia
às rígidas normas poéticas do Arcadismo. Este Bocage pré-romântico é o poeta
que traz para a poesia o mundo pessoal e subjetivo da paixão amorosa, do
sofrimento, da morte. É o poeta que confessa as paixões sem atenuá-las pela sua
tradução em termos mitológicos. Para este Bocage pré-romântico, a natureza
amena e delicada, as pastorinhas e ninfas, o repouso e a harmonia (...) cessam
de existir, ou ao menos de merecerem poemas. À crença arcádica de que a Razão é
a faculdade criadora por excelência, Bocage propõe escandalosamente o universo
dos sentimentos e da paixão.”
Porém, esse
Bocage pré-romântico ainda usa uma linguagem arcaica, rígida, com alusões
mitológicas e vocabulário raro. “As frases continuam obedientes a uma métrica
hirta e preestabelecida, que exige tônicas nesta ou naquela sílaba. O
resultado, às vezes, é desastroso: é emoção demais para liberdade de menos.”
Já o “outro
Bocage”, o censurado e satírico, “punha o dedo acusador nas chagas sociais de
um país de aristocracia decadente, aliada a um clero igualmente corrupto (...).
Outro tema freqüentíssimo nessa poesia censurada e proibida de Bocage é a
exaltação do amor físico, que, inspirado no modelo natural, varre longe todo o
platonismo fictício de uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que
não fosse convenientemente escondido.”
Sobre a poesia
de Bocage diz Antônio Saraiva:
“O Elmano
Sadino da Nova Arcádia é já romântico por temperamento, apesar de muito
vocabulário e muito alegorismo arcádicos e dos seus laivos de iluminismo. (...)
A sua arte versificatória, sobretudo no soneto, tem tido muitos admiradores,
entre os quais se destaca o parnasiano brasileiro Olavo Bilac. Todavia, esse
encanto é um tanto monótono e fácil, e a sua orquestração verbal (...) soa
muitas vezes a falso. O que o distingue melhor é a matéria psicológica que traz
pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o
horror do aniquilamento na morte. Tal egotismo percebe-se ainda na maneira
abstrata e retórica com que, em nome da Razão, se revolta contra a humilhação
da dependência e contra o despotismo; no gosto do fúnebre e do noturno, e nos
clamores não menos retóricos de ciúme, de blasfêmia ou contrição. (...) Esse
gosto já tão romântico do funéreo e tenebroso percorre grande parte da poesia
de Bocage. Quero fartar o meu coração de horrores, desfecho de um dos sonetos
mais característicos, compendia a sua imaginação sedenta do hórrido ou
horrendo, de horríssonos furores: tempestades reais ou míticas, crimes
lendários, históricos ou noticiados nas gazetas, pesadelos, agonias frenéticas,
visões de antros ou abismos, minuciosas descrições de beberagens, esconjuros e
outros bruxedos.”
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