sábado, 10 de maio de 2014

BOCAGE E O ARCADISMO



Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (1765-1805) foi o maior representante do arcadismo português. A sua infância foi infeliz. O pai foi preso quando ele tinha apenas seis anos de idade; a mãe faleceu quatro anos depois. Ingressou no seminário para ordenar-se padre, mas abandonou o projeto e com 16 anos alistou-se na Escola da Marinha Real, onde fez estudos para tornar-se guarda-marinha. Em 1786, embarcou como oficial da marinha para a Índia, fazendo escalas no Brasil e em Moçambique. Foi depois escalado para Damão, mas desertou em 1789, embarcando para Macau. Foi preso pela inquisição, e na cadeia traduziu poetas franceses e latinos. A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o período de maior boêmia e vida de aventuras. Ainda em 1790 foi convidado e aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudônimo Elmano Sadino. Pouco tempo depois já escrevia ferozes sátiras contra os confrades. Em 1791, foi publicada a 1.ª edição de seu livro  Rimas. Em 1797, foi preso novamente sob a alegação de ser “desordenado nos costumes”. Ficou aprisionado no Limoeiro até o final desse ano, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí ficou até 17 de fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Neri, depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redator e tradutor. Sobre esse episódio, comenta Marisa Lajolo: “Acusado de heresia, foi implacavelmente perseguido, julgado e condenado, ficando na prisão por algum tempo. Ao recuperar a liberdade, graças à influência de amigos e com a promessa de converter-se, o poeta, já velho, abandonou totalmente sua antiga vida de boemia e zelou, até seus últimos momentos, por impor a seus contemporâneos uma imagem nova: a de homem arrependido, digno e exemplar chefe de família”. Bocage só saiu em liberdade no último dia de 1798. De 1799 a 1801 trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir. A partir de 1801, até à morte por aneurisma, aos 40 anos, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da travessa André Valente. A 15 de Setembro, data de nascimento do poeta, é feriado municipal em Setúbal.


Contexto histórico:

1750 D. José assume o trono português e o marquês de Pombal, a Secretaria do Estado.

1755 Um grande terremoto abala Lisboa; o marquês de Pombal, aproveitando-se da necessária reconstrução de Lisboa, assume plenos poderes.

1755-1777 Implantação das reformas pombalinas, com destaque para a laicização do ensino.

1777 Morte de D. José. Assume o trono a rainha D. Maria I. Pina Manique, nos anos seguintes, irá ganhando poderes e revogando as medidas pombalinas.

1789 Revolução Francesa.

1795 A rainha D. Maria I é declarada louca; sobe ao trono D. João, o príncipe regente.

A respeito dessa época, escreve Marisa Lajolo:

“O século XVIII termina na Europa com a vitória das Luzes. Mas encontra Lisboa com as luzes apagadas ou bruxuleantes em salas secretas. (...) Enquanto na França partiam as ondas vermelhas da Revolução, Portugal perpetuava o pantanal cinzento do absolutismo e das atitudes inquisitoriais da Mesa Censórea e dos calabouços destinados aos maçons e descontentes”. Após a ascensão do marquês de Pombal, acontecem algumas mudanças: “Pombal combateu ferozmente os jesuítas, expulsou-os do Império e transferiu o poder censóreo da Inquisição para o Estado. Laicizou o ensino, procurou estimular as atividades manufatureiras, reforçou o poder mercantil e o monopólio colonial luso através das companhias de comércio, ao mesmo tempo em que renovava a universidade e dava poder a letrados que comungavam com ele o credo racionalista. (...) “Mas Pombal não teve êxito ao romper a dependência diante dos britânicos. Portugal nunca dera ensejo à formação de uma burguesia minimamente poderosa, de ofícios, indústrias e cabedais financeiros que pudesse servir de base às reformas pombalinas. Ao contrário, a liderança na sociedade portuguesa continuava nas mãos de uma aristocracia cortesã, habituada ao dispêndio inútil, a quem Pombal não combateu com a devida eficácia, por não dispor de outros apoios políticos. Assim, a política econômica de Carvalho e Melo acabou por repetir práticas de um século atrás.” (...) “Por outro lado, o marquês não era tão ‘ilustrado’ quanto seus cortesãos queriam fazer crer. Através da Real Mesa Censória, manteve a proibição das obras filosóficas de Spinoza, Hobbes, Voltaire, Diderot e até mesmo da Nova Heloísa de Rousseau.”

Com a morte de D. José I, em 1777, e a ascensão da rainha D. Maria I ao trono, Pombal cai em desgraça. D. Maria I foi a primeira rainha reinante em Portugal. Seu primeiro ato como rainha, iniciando um período que ficou conhecido como a Viradeira, foi a demissão e exílio da corte do marquês de Pombal. Ela perseguiu a maçonaria e concedeu asilo a numerosos aristocratas franceses fugidos da Revolução Francesa. Em 5 de janeiro de 1785 promulgou um alvará impondo pesadas restrições à atividade industrial no Brasil. A rainha D. Maria, a Louca, tem a sua demência reconhecida oficialmente em 1795, quando o reinado passa para o príncipe-regente, o futuro D. João VI.

No plano internacional, conforme escreve Lajolo, “a Inglaterra continuava a dominar a diplomacia e os portos lusitanos, constrangidos a impedir, por exemplo, o acesso dos barcos dos Estados Unidos (...). D. Maria I integrou a aliança contra a França revolucionária, envolvendo-se nos combates da difícil campanha militar do Rossilhão, em 1792. Os gastos com o pobre exército português abalaram ainda mais as combalidas finanças do Estado: o ouro brasileiro se esgotara, mercê de uma exploração gulosa e irracional. E as finanças pouco a pouco se esvaíam, pois a Corte não parava de despender dinheiro em diversões fúteis”, como o gasto de 250 mil francos por mês só na manutenção da sala de ópera do palácio.

SOBRE A POESIA DE BOCAGE

Marisa Lajolo escreve:

“Analisando-se alguns aspectos da poesia oficial e não-censurada de Bocage, observa-se que boa parte dela é composta de longos poemas circunstanciais e desinteressantes, que celebram acontecimentos (nem sempre relevantes) do tempo do poeta. Neste rol incluem-se, por exemplo, poemas dedicados ao nascimento da rainha Maria Teresa (...) ou homenagens a esta ou àquela senhora fulana. Mas o convencionalismo desses poemas todos não se limita à sua carga bajulatória. São poemas convencionais também por seguirem de perto (...) as normas e regras da poesia da época. Assim, copiando as lições dos mestres gregos e latinos, já traduzidos e adaptados à sensibilidade da Europa setecentista, esses poemas usam e abusam da mitologia, ou, melhor dizendo, de expressões mitológicas (...). Esse código mitológico torna o Bocage destes versos quase ilegível para o público de hoje, absolutamente desabituado a tais referências olímpicas. (...) As alusões mitológicas nesta poesia do século 18 são impostas pela convenção poética e se transformam num código rígido, em clichês e estereótipos que não correspondem a nenhum sentir profundo.”

As referências mitológicas usadas por Bocage são amplamente usadas na poesia do Arcadismo, assim como a fuga das cidades (fugere urbem), o bucolismo (idealização da natureza e da vida pastoril), o epicurismo, os temas do amor e da solidão, a busca do prazer no momento presente (carpe diem, “aproveita o teu dia”), o racionalismo, a clareza, equilíbrio, harmonia e objetividade. “Nem sempre, porém, Bocage foi um perfeito árcade”, escreve Lajolo. Muitos críticos consideram-no um pré-romântico. O pré-romantismo de Bocage consiste numa primeira ruptura, numa primeira rebeldia às rígidas normas poéticas do Arcadismo. Este Bocage pré-romântico é o poeta que traz para a poesia o mundo pessoal e subjetivo da paixão amorosa, do sofrimento, da morte. É o poeta que confessa as paixões sem atenuá-las pela sua tradução em termos mitológicos. Para este Bocage pré-romântico, a natureza amena e delicada, as pastorinhas e ninfas, o repouso e a harmonia (...) cessam de existir, ou ao menos de merecerem poemas. À crença arcádica de que a Razão é a faculdade criadora por excelência, Bocage propõe escandalosamente o universo dos sentimentos e da paixão.”

Porém, esse Bocage pré-romântico ainda usa uma linguagem arcaica, rígida, com alusões mitológicas e vocabulário raro. “As frases continuam obedientes a uma métrica hirta e preestabelecida, que exige tônicas nesta ou naquela sílaba. O resultado, às vezes, é desastroso: é emoção demais para liberdade de menos.”

Já o “outro Bocage”, o censurado e satírico, “punha o dedo acusador nas chagas sociais de um país de aristocracia decadente, aliada a um clero igualmente corrupto (...). Outro tema freqüentíssimo nessa poesia censurada e proibida de Bocage é a exaltação do amor físico, que, inspirado no modelo natural, varre longe todo o platonismo fictício de uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido.”

Sobre a poesia de Bocage diz Antônio Saraiva:

“O Elmano Sadino da Nova Arcádia é já romântico por temperamento, apesar de muito vocabulário e muito alegorismo arcádicos e dos seus laivos de iluminismo. (...) A sua arte versificatória, sobretudo no soneto, tem tido muitos admiradores, entre os quais se destaca o parnasiano brasileiro Olavo Bilac. Todavia, esse encanto é um tanto monótono e fácil, e a sua orquestração verbal (...) soa muitas vezes a falso. O que o distingue melhor é a matéria psicológica que traz pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o horror do aniquilamento na morte. Tal egotismo percebe-se ainda na maneira abstrata e retórica com que, em nome da Razão, se revolta contra a humilhação da dependência e contra o despotismo; no gosto do fúnebre e do noturno, e nos clamores não menos retóricos de ciúme, de blasfêmia ou contrição. (...) Esse gosto já tão romântico do funéreo e tenebroso percorre grande parte da poesia de Bocage. Quero fartar o meu coração de horrores, desfecho de um dos sonetos mais característicos, compendia a sua imaginação sedenta do hórrido ou horrendo, de horríssonos furores: tempestades reais ou míticas, crimes lendários, históricos ou noticiados nas gazetas, pesadelos, agonias frenéticas, visões de antros ou abismos, minuciosas descrições de beberagens, esconjuros e outros bruxedos.”

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