O
Concílio de Trento, realizado entre 1545-1563, em resposta ao avanço da Reforma
Protestante na Europa, toma diversas decisões que terão consequências não
apenas para a Igreja Católica, mas também para a cultura e a política europeias.
Entre essas decisões, estão a reorganização da Inquisição (1542), a divulgação
de um index de livros proibidos, a
afirmação de que apenas a versão latina da Bíblia – a Vulgata de São Jerônimo – é legítima, a elaboração do catecismo
romano e de um missal, a criação de novas ordens religiosas, como a Companhia
de Jesus, para a realização de trabalho missionário nas novas colônias nas
Américas. O espírito da Contra-Reforma impregnou profundamente a arte barroca, que
surge em oposição ao humanismo e ao racionalismo do Renascimento. Conforme escreve Frederico Barbosa:
“O barroco
é contemporâneo, em Portugal, da dominação espanhola, iniciada em 1580 com a
ascensão do rei Felipe II, de Espanha. Restaurada em 1640 por D. João IV, a
frágil soberania portuguesa é consolidada, em grande parte, graças à riqueza
proveniente do ouro extraído do Brasil, durante o reinado de D. João V
(1706-1750). (...) A poesia portuguesa do período barroco, reunida em
compilações do século XVIII, como a Fênix
Renascida (1716), reflete a influência espanhola: predominam as imitações
de Góngora e Quevedo. Alguns poemas cultistas recém-descobertos, no entanto,
revelam uma poesia visual muito sofisticada e antecipatória de algumas
experiências de vanguarda do século XX.” (A respeito da poesia visual do
barroco português há dois interessantes livros de Ana Hatherly – A experiência do prodígio e A casa
das musas).
Segundo
Antonio Candido, o cultismo “repousa
sobretudo no som e na forma, tendendo para uma verdadeira exaltação sensorial,
enquanto favorece a fantasia na busca de imagens e sensações que ultrapassam as
sugestões da realidade”. Exemplos de cultismo são as palavras raras, os
neologismos e trocadilhos usados na poesia barroca. Já o conceptismo, segundo Candido, “apóia-se no significado da palavra,
tendendo para o abusivo jogo de vocábulos e de raciocínio, para as agudezas ou
sutilezas de pensamento, com transições bruscas ou associações inesperadas,
além de seu misticismo ideológico. Ambos têm ascendência renascentista”. Além
disso, predominam no barroco o uso das formas clássicas (o soneto, a canção, a
ode etc.), a agudeza (sutileza de
raciocínio), o uso de antíteses, paradoxos, metáforas e alegorias (a alegoria pode ser definida como a construção do
pensamento por meio de imagens ou metáforas). Conforme a Arte poética de Horácio, seguida pelos poetas clássicos e barrocos,
o poeta deveria ter engenho (talento)
e arte (domínio técnico) e conciliar
o aspecto lúdico com o ético ou filosófico: “instruir e deleitar”. Quanto à
temática, além das composições de caráter moral, religioso ou de circunstância
(poemas em homenagem a reis, nobres ou prelados), havia poemas satíricos e
mesmo eróticos (caso do poeta brasileiro Gregório de Matos). Como exemplos do
barroco literário português, citamos um soneto de D. Tomás de Noronha e um
poema de Antônio Serrão de Castro:
PRAGAS SE CHORAR MAIS POR
UMA DAMA CRUEL
Não sossegue eu mais que um bonifrate,
De urina sobre mim se vase um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me dêm água em açafate.
Se jogar o xadrês, me dêm um mate,
E jogando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate,
Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,
E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.
(Soneto de D. Tomás de Noronha, século XVI.)
Não sossegue eu mais que um bonifrate,
De urina sobre mim se vase um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me dêm água em açafate.
Se jogar o xadrês, me dêm um mate,
E jogando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate,
Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,
E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.
(Soneto de D. Tomás de Noronha, século XVI.)
A UMA DAMA QUE DESMAIOU
DE VER UMA CAVEIRA
Mote:
Já fui flor, já fui bonina,
Agora estou desta sorte,
Fui o retrato da vida
Agora sou o da morte.
Glosa:
Se desmaias de me ver,
Eu também de ver-te a ti,
Pois qual tu te ves me vi,
E qual me ves has-de ser;
Esta caveira has-de ter,
Se te imaginas divina,
Que eu também quando menina
Fui um sol, fui uma aurora,
E se sou caveira agora,
Já fui flor, já fui bonina.
Se me viras Primavera,
Sendo uma inveja de flores,
Então mais te dera horrores,
Então alento te dera;
Secou esta verde hera
Um cruel sopro da morte,
Porque com seu braço forte
Tudo prosta, tudo humilha,
Que eu ontem fui maravilha,
Agora estou desta sorte.
Ver-me ontem era ventura,
Hoje ver-me horrores dou;
Hoje uma caveira sou,
Ontem flor da fermosura.
Foi tal a minha pintura,
Tão valente e tão subida,
Tão forte e tão presumida,
Tão corada, tão fermosa,
Que soberba e vangloriosa
Fui o retrato da vida.
Acabou-se este portento,
Já este sol se eclipsou,
Já esta flor se murchou,
Já se acabou este alento.
Como a vida foi um vento,
Acabou-se de tal sorte,
Que sendo com meu ornato
Ontem da vida retrato,
Agora sou o da morte.
(Poema de António Serrão de Castro, 1610-1685.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário