João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, poeta, romancista e dramaturgo português, nasceu no Porto a 4 de fevereiro de 1799. Viveu a adolescência nos Açores, durante a ocupação francesa
A poesia de Almeida Garrett, especialmente as duas
coletâneas publicadas na última fase da sua vida (Flores sem fruto, de 1844, e Folhas caídas,
de 1853)
introduziram uma espontaneidade e uma simplicidade praticamente desconhecidas
na poesia portuguesa anterior. A
liberdade da metrificação, o vocabulário
corrente, o ritmo e a pontuação carregados de subjectividade
são as principais marcas destas obras. (Fonte: Wikipédia)
Conforme Antônio Soares Amora:
“Almeida Garret foi um homem típico do Portugal da
primeira metade do século 19, ou, mais explicitamente, do Portugal da revolução
liberal e romântica. (...) Desde 1822, quando se lançou como escritor de grande
público, com uma obra de escândalo, O
retrato de Vênus, até morrer, com 55
anos – sempre impôs, na vida política, social e intelectual portuguesa, a sua
presença atuante, influente e quase sempre dominante”. Após sua morte, houve “o
culto da sua personalidade e da sua obra, culto que produziu uma linhagem de
garrettistas”. Garrett “iniciara a reforma romântica da literatura de língua
portuguesa. (...) Da ampla e poligráfica obra de Garrett, já foram consagrados
como pontos mais altos o poema Camões,
publicado em Paris, em 1825; o Romanceiro,
começado a editar em 1828, em Londres; o drama Frei Luís de Sousa, representado e publicado em 1843, em Lisboa; o
livro, de variada matéria, Viagens na
Minha Terra, publicado em volume em 1846, e finalmente as Folhas Caídas, poemas lírico-amorosos,
saídos em 1853 (...). O amor da Pátria, a paixão pela sua grandeza passada, a
esperança da reconquista dessa grandeza, o sofrimento ante suas desditas, a
saudade dela em acerbo exílio, a inconformação do mais puro e intenso sentimento
patriótico ante um governo e uma classe dominante impatrióticos – eram
sentimentos que Garrett, nos seus vinte e cinco anos, via em Camões; e pôde dar a esses sentimentos
veemente expressão, porque eram também os sentimentos que o dominavam, bem como
a todos os seus contemporâneos, perseguidos e deportados, de Portugal e de
outros países, da Europa e da América,
pela luta contra o absolutismo e o despotismo e pela defesa do liberalismo.
(...). No Romanceiro, resgatou o
passado cavalheiresco, místico, marítimo e sentimental, naquilo que a raça
portuguesa possuía de mais profundo e permanente em matéria de sentimento
religioso, heróico e amoroso. O Romanceiro
despertou, no Portugal romântico, o gosto das velhas tradições nacionais e da
poesia popular”. Já no drama Frei Luís de
Sousa, encontramos elementos como a “simplicidade do enredo, a concentração
dos efeitos dramáticos, a economia e propriedade dos recursos expressivos, a
verossimilhança e força dos caracteres e o achado de uma essência trágica, isto
é, de uma situação ‘catastrófica’ e portanto sem solução (...), tratada com
perfeição”.
RESUMO GERAL DA
PEÇA FREI LUÍS DE SOUSA
ATO I
O drama histórico Frei
Luís de Sousa, de Almeida Garrett, é ambientado na cidade de Almada
(próxima à Lisboa) no século XVII, após a batalha de Alcácer-Quibir, em que
morreu D. Sebastião, e durante a dominação espanhola sobre Portugal. Logo no
texto inicial do Ato I, que descreve o luxuoso cenário, há referência ao
retrato de D. Manuel de Sousa, como cavaleiro de Malta, vestido de negro, com
uma cruz branca no peito.
Madalena faz a fala inicial citando versos de Camões
sobre o “engano d’alma, ledo e cego, / Que a fortuna não deixa durar muito”,
que já antevê o trágico final da peça. Aproxima-se Telmo, um velho escudeiro
que servira ao primeiro marido de Madalena, D. João de Portugal, e que, fiel ao
seu senhor, não aprovara o segundo casamento desta senhora. Os dois iniciam um
diálogo, e Madalena pede ao escudeiro que, quando conversar com sua filha
Maria, evite alimentar na moça a expectativa pelo retorno de D. Sebastião.
Madalena preocupa-se com a fantasia da filha, ao mesmo tempo em que teme não o
regresso do rei, mas o de seu primeiro marido, que desaparecera na mesma
batalha, há 21 anos. O retorno de D. João de Portugal deixaria Madalena na
situação de mulher adúltera (seu próprio nome, de origem bíblica, não foi
escolhido ao acaso), anularia seu segundo casamento, e a filha Maria seria
coberta de vergonha.
Ao mesmo tempo, Madalena expressa uma crítica ao sebastianismo,
que acompanhou a vida portuguesa ao longo de séculos: “... a esse desgraçado
rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que
morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade”. Madalena vê no
sebastianismo da filha um sinal de mau agouro, um presságio “de uma desgraça
que está iminente sobre a nossa família”.
Madalena expressa ainda a preocupação pela demora do
marido, Manuel de Sousa, de retornar de Lisboa, que na época enfrentava uma
peste.
Na cena III vem Maria, cantando e sonhando com “a ilha
encoberta onde está el-rei D. Sebastião, que não morreu e que há de vir um dia
de névoa”. Ela é recriminada então pela mãe, para quem “o povo, coitado,
imagina essas quimeras para se consolar na desgraça”. Ela censura a filha por
ler demais e “estar sempre a imaginar nessas coisas que são tão pouco para a
tua idade”. Numa nota de rodapé, Garrett refere-se às antigas cantigas
populares portuguesas, que ele recuperou em seu Romanceiro.
Na cena V, frei Jorge, irmão de Manuel, traz a notícia de
que quatro governadores de Lisboa viriam a Almada e que requisitaram a casa de
Madalena para se hospedarem. A família teria de se mudar, para que ali se
instalassem as autoridades vassaladas do rei da Espanha. Maria revolta-se:
“Fechamos-lhes as portas... Metemos a nossa gente dentro: o terço de meu pai
tem mais de seiscentos homens, e defendemo-nos. Pois não é uma tirania?” O
episódio aponta a dimensão política, nacionalista e patriótica, da peça.
D. Manuel de Sousa aparece em cena, confirma o aviso dado
por frei Jorge e diz que “sairemos esta noite mesmo”. Critica os governadores
de Lisboa, acusando-os de “oprimir os seus naturais em nome de um rei
estrangeiro”. Maria incentiva a revolta do pai, dizendo: “mostrai-lhes quem
sois e o que vale um português dos verdadeiros”.
Na cena VIII, D. Manuel glosa a filha, dizendo: “Há de
saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal”. Ele planeja incendiar
a própria casa, para não abrigar os governadores de Lisboa, o que é consumado
no final do primeiro ato.
Antes disso, anuncia a Madalena que eles ficarão
instalados na casa do primeiro marido dela, D. João de Portugal, o que
aterroriza a mulher, que sente maus presságios: “Bem sei que é loucura; mas a
idéia de tornar a morar ali, de viver ali contigo e com Maria, não posso com
ela. Sei decerto que vou ser infeliz, que vou morrer naquela casa funesta”. O
marido faz pouco caso dos temores da mulher, e ordena que todos se preparem
para abandonar a casa naquela mesma noite, enquanto ele prepara uma “lição aos
nossos tiranos”. Toma então duas tochas e começa a incendiar a casa; as chamas
queimam o retrato de D. Manuel, para a tristeza de Madalena, que sente novo
presságio.
ATO II
O segundo ato da peça é ambientado no antigo palácio do
primeiro marido de Madalena, D. João de Portugal. Num salão antigo, vêem-se
retratos de cavaleiros, monges, de el-rei D. Sebastião e do falecido dono do
palácio. Maria diz a Telmo que a perda do retrato de seu pai, consumido pelas
chamas, é visto pela mãe como “prognóstico fatal de outra perda maior, que está
perto, de alguma desgraça inesperada”. Maria nota o retrato de D. João de
Portugal e pergunta a Telmo quem era aquele cavaleiro. O aio hesita, dizendo
tratar-se de um membro da Casa de Vimioso. Maria percebe a mentira, e observa
que a sua mãe ficou intrigada com esse retrato, para o qual repetia a frase “o
outro, o outro...”. Conforme ela notara, ambos os retratos não saíam da cabeça
de sua mãe, num conflito emocional e psicológico representado pela comparação
dos dois quadros. Em seguida, a conversa gira em torno de Camões, que Telmo,
talvez falando como porta-voz de Garrett, considera que foi menosprezado em
vida pelos poderosos, como se fosse apenas um servo, sendo idolatrado apenas
após a sua morte. (Camões já apareceu no início da peça, na fala inicial de
Madalena). Retorna Manuel de Sousa, que revela a sua filha a identidade do
cavaleiro representado no quadro, de forma respeitosa. Na Cena IV, Manuel
informa que precisa ir a Lisboa, resolver negócios; Maria pede para ir junto, a
fim de visitar sua tia. Madalena não gosta da idéia, ainda mais que eles
partiriam numa sexta-feira, dia da Paixão de Cristo, o que para ela era
presságio de algo grave. Ela teme ficar
sozinha e, por algum motivo, perder o marido, a quem ama. O irmão de Manuel,
frei Jorge, fica com ela, fazendo-lhe companhia. Pouco após a partida do marido
e da filha, Madalena recebe a visita de um romeiro, que diz estar voltando de
uma peregrinação à Terra Santa, com passagem por Roma. O romeiro informa ter
visitado o Santo Sepulcro, e que passou vinte anos prisioneiro na Palestina,
portanto, desde a época da batalha de Alcácer-Quibir. Por fim, ele diz a
Madalena que traz para ela uma mensagem de alguém que a quer muito bem, e que
pediu para avisá-la que estava vivo. Madalena logo percebe tratar-se de seu
marido, que julgava morto há muitos anos. Na peça fica apenas sugerido que D.
João de Portugal e o romeiro são na verdade a mesma pessoa; quando frei Jorge
pergunta o nome do romeiro, este, repetindo a fala de Ulisses na Odisséia,
responde: “Ninguém”. (Há também um paralelo com a figura de Ulisses, vestido
como mendingo, retornando a Ítaca, onde vê Penélope assediada por pretendentes,
doze anos após a sua partida para a guerra de Tróia).
ATO III
Manuel lamenta a sorte da filha, que será considerada
bastarda, além de ficar órfã, uma vez que os pais, como penitência, ingressarão
em ordens religiosas (e Manuel compara o hábito monástico a uma mortalha). Ele
assume a culpa por toda a desgraça que recaiu em sua família. Maria, mesmo sem
saber do ocorrido, apenas por ver o sofrimento da mãe, contrai tuberculose,
expelindo sangue. Telmo encontra o romeiro, e, da conversa entre ambos,
acontece a revelação da identidade de D. João de Portugal. Este, embora sinta
vergonha e desonra pela traição da esposa, não faz escândalo e parte, para
evitar os males que poderiam recair sobre ela, por compaixão ou respeito pela
que amou outrora. Madalena, por sua vez, não aceita perder o marido a quem ama
e põe em dúvida as palavras ditas pelo romeiro, para tentar salvar o seu
casamento e a união da família; Manuel, porém, não volta atrás em sua decisão,
dizendo que o amor entre eles é impossíve. Madalena abraça-se a uma cruz,
temendo pela filha, e pergunta a Deus o que mais lhe será tirado, o que a sorte
ainda lhe reserva. Na Cena X, acontece a ordenação monástica de Manuel e
Madalena, já vestidos com hábitos religiosos. Maria intervém na cena, em estado
de alienação, roupas brancas, desalinhadas, cabelos soltos, rosto macerado pela
doença e olhar desvairado. Ela questiona: “Que Deus é esse que está nesse
altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?” Denunciando já saber a verdade sobre o
primeiro marido da mãe, indaga: “Que me importa a mim com o outro? Que morresse
ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou
ressuscite agora para me matar?... Mate-me, mate-me, se quer, mas deixe-me este
pai, esta mãe que são meus”. Ela questiona o preconceito religioso que nega ser
ela a filha legítima de seu pai e sua mãe, ao mesmo tempo em que anuncia a
própria morte, pela dor da separação. A peça termina com a bênção do prior à
menina, que encomenda a sua alma a Deus.
Nota 1: a personagem Maria, talvez a
mais rica da peça, expressa talvez o pensamento de Garrett (na política, a defesa
do nacionalismo, do patriotismo; nos costumes, a liberdade do amor).
Nota 2: há nessa obra um conflito
entre o pensamento tradicional, conservador, católico, de um lado, e o
pensamento liberal e revolucionário, de outro.
Comentários de Antônio Saraiva:
“A teoria do ‘drama’ (o novo
gênero teatral ‘romântico’ que bania a distinção entre a tragédia e comédia),
prenunciada no século XVIII, nomeadamente por Diderot, fora exuberantemente
popularizada por Victor Hugo no prefácio de Cromwell
(1827). Algumas características: multiplicidade da localização e alongamento do
tempo, para permitir uma ação mais livre; recurso ao característico, local,
histórica e psicologicamente; efeitos de contraste entre o grotesco e o
sublime; diversidade dos tipos humanos, até nas suas formas patológicas e
vulgares.”
Sobre as primeiras peças de
Garrett, de conteúdo histórico-político, diz Saraiva: “Garrett pôs ao
serviço deste conceito da missão do teatro uma arte notável do diálogo e do
efeito cênico, uma inteligência lúcida, apoiada numa informação histórica
que, então, se pode julgar considerável; mas não conseguiu inspirar sopro de
vida a este conjunto de peças ditadas por um objetivo didático. Por isso
nenhuma delas sobreviveu.”
“Noutro plano muito superior se
recorta o Frei Luís de Sousa (1844),
obra solitária não apenas na literatura portuguesa, e no teatro romântico em
geral, mas até no próprio teatro garrettiano.”
Nesta obra, diz Saraiva, o autor
português “pretendeu incluir uma lição cívica: o sentimento da independência,
que a intervenção antidemocrática de ingleses e espanhóis na vida política
portuguesa fazia então vibrar agudamente”.
“Mas estas intenções não impedem
que a peça esteja centrada num drama familiar, íntimo, e atual no tempo de
Garrett.”
Esta peça, segundo
Saraiva, se aproxima da tragédia clássica mais do que do drama, pois “não
apresenta cenas cômicas nem tipos grotescos ou simplesmente extravagantes”. O
tempo (cerca de uma semana) e o lugar (dois solares e uma igreja contígua a uma
delas, tudo em Almada) aproximam-se da concentração exigida pelo teatro
clássico. A cena nuclear é, como recomendava Aristóteles, uma anagnórise (reconhecimento); e o pathos (aflição do protagonista)
adensa-se num clímax (crescente
precipitação fatal dos fatos), até a catástrofe.”
Saraiva comenta o prefácio que
Garrett escreveu para a peça, onde ele se refere ao “terror” e à “piedade”, que
são “dois elementos fundamentais da teoria aristotélica da tragédia”,
relacionando depois Frei Luís de Sousa
aos clássicos franceses e italianos (Racine, Corneille etc.) e às tragédias
gregas.
Na peça de Garrett, “a crise dramática
resulta assim da contradição entre a situação criada – a vida atual – e um
passado incompatível com ela, que não renuncia aos seus direitos – um passado
que também é vida. A contradição resolve-se pelo aniquilamento recíproco das
posições contraditórias.”
“Como nas tragédias
clássicas, o destino patético é desencadeado por uma única infração dos
costumes consagrados.”
“O senso de destino exprimiria
uma ânsia de expiar a culpa. Aliás, como veremos, o sentimento de culpa surge
insistentemente na obra garrettiana, quanto a autoridades patriarcais ou
religiosas (pais e clérigos), sobretudo na fase em que assiste à degradação do
seu liberalismo ideal, convertido em ditadura cabralista do capitalismo
latifundiário e financeiro.”
Saraiva observa que nesta
peça há uma tensão entre, por um lado, a “reivindicação da liberdade de amar” e
a “exigência de mudar o mundo”, e, de outro lado, “remorsos, o sentimento
religioso de um fatalismo transcendente (com o Destino incógnito a falar, em
numerosas coincidências, pela própria voz das personagens)”.
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