quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O TEATRO DE GIL VICENTE




“O período histórico em que se situa Gil Vicente é chamado de Humanismo, ou Segunda Época Medieval ou Primeiro Renascimento”, escreve Frederico Barbosa. Este período se inicia em Portugal “em 1418, quando Fernão Lopes (cronista, considerado o pai da História Portuguesa) é nomeado, pelo rei D. Duarte, Guarda-Mor da Torre do Tombo (o mais importante arquivo histórico de Portugal).” Como era esse novo tempo, que foi um marco na cultura ocidental? Segundo Frederico Barbosa, esta é “a época das grandes navegações, descobertas, invenções. No interior dos palácios ainda persistia uma nobreza tradicional, de estrutura feudal, mas que já estava decadente. Nas ruas, porém, fervia a agitação do comércio, de que se originou uma nova classe social, a burguesia, e uma nova ideologia das relações humanas centrada no lucro e no saber.”

Embora contemporâneo do Renascimento, que valorizava a ciência, a filosofia e a arte, os estudos clássicos da cultura greco-romana e que colocava o homem no centro de todas as coisas (o chamado antropocentrismo, diferente da visão teocêntrica da Idade Média, que considerava Deus como o principal valor cultural), Gil Vicente permanece com um pensamento próximo ao medieval: ele é um homem em conflito com a sua época. Conforme escreve Segismundo Spina, “não foi um humanista, nem um espírito representativo das influências italianizantes e clássicas: permaneceu um homem do outono da Idade Média, de cultura escolar e teológica, divorciado do saber científico, oferecendo uma concepção teocêntrica do mundo, um ideal social hierárquico e uma ética fortemente baseada na ascese. (...) Gil Vicente permaneceu um homem do povo, de profundas raízes nas tradições folclóricas e poéticas da sua terra, cujo mundo procurou levar para o tablado sem o processo clássico da seleção dos temas. (...) Na sua obra está evidente uma concepção cristianíssima da vida, e da mais rigorosa ortodoxia. A sátira e as peças pias estão continuamente a serviço do missionário, preocupado na edificação do homem e na sua subordinação à Providência”.


VIDA DE GIL VICENTE

Sabemos pouco sobre a vida de Gil Vicente; ignora-se o local de seu nascimento, e mesmo a data, que pode ter ocorrido em 1465 ou 1466. Teria falecido entre 1536 e 1540. Casou-se duas vezes, primeiro com Branca Bezerra, depois com Melícia Rodrigues; sua filha Paula Vicente foi música e aia da infanta D. Maria, e seu filho Luís Vicente reuniu a produção teatral do pai e em 1562 a publicou com o título de Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (da qual algumas peças foram excluídas, por censura da Inquisição; outras desapareceram). O autor foi considerado, por Menendez y Pelayo, como o maior artista da Europa de seu tempo. Conforme escreve Segismundo Spina: “tendo-se em vista uma relativa extensão de conhecimentos que a sua obra revela — especialmente teológicos e filosóficos —, Gil Vicente deve ter freqüentado alguma escola do tempo, ou, na melhor hipótese de Carolina Michaelis, ter sido orientado por algum religioso culto quando o poeta viveu a sua adolescência em Beira. (...) Encarregado da preparação das festas palacianas e mestre da balança da Casa da Moeda, desfrutou uma situação bem cômoda e propícia a garantir a longa trajetória dramática de 34 anos, desde a sua primeira peça, A Visitação do Vaqueiro (1502) à representação de uma comédia em Évora, intitulada Floresta de Enganos (1536).”  Gil Vicente foi incluído no Cancioneiro Geral de García de Resende, uma das coletâneas mais importantes da poesia portuguesa do período.


TEATRO DE GIL VICENTE

Sobre o teatro de Gil Vicente escreve Segismundo Spina:

“Diferentemente do que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem por propósito apresentar conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro de) eles, mas um teatro de sátira social, um teatro de idéias, um teatro polêmico. No palco vicentino não perpassam caracteres individuais, mas tipos sociais agindo segundo a lógica da sua condição fixada de uma vez para sempre; e outros entes personificados. Especificando, poderíamos distinguir: a) tipos humanos, como o Pastor (...), o Camponês, o Escudeiro (...); b) personificações alegóricas, como Roma, representando a Santa Sé, a Fama Portuguesa, as quatro Estações; c) personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os deuses greco-romanos; d) figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a hierarquia dos Anjos e a Alma; e) (...) o Parvo, que é um tipo tradicional europeu. (...) O tipo mais insistentemente observado e satirizado por Gil Vicente é sem dúvida o clérigo, e especialmente o frade, presente em todos os setores da sociedade portuguesa (...). Gil Vicente censura nele a desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres.”

Gil Vicente nunca critica instituições, como a monarquia ou a Igreja Católica, mas os vícios que corroem a sociedade de seu tempo. No Auto da Barca do Inferno, por exemplo, os personagens que embarcam no navio que conduz ao Inferno representam pecados como a luxúria, a ira, a soberba, a avareza etc. Por isso mesmo dizemos que é um teatro alegórico, pois faz a representação do pensamento por meio de símbolos, imagens metáforas.


Segismundo Spina observa que


“Antes do aparecimento de Gil Vicente, não podemos falar num teatro em Portugal, não obstante possamos respingar algumas notícias de dramaturgia religiosa durante a Idade Média e alguns documentos de teatro alegórico na época de D. João II, um teatro à base de pura cenografia e em que a palavra literária esteve quase inteiramente ausente.” O que havia, antes de Gil Vicente, era “um teatro inorgânico, desprovido de elementos literários (...), um teatro puramente cenográfico, em que o aparato alegórico dominava a representação”. (fins do século XV, reinado de D. João II.) O que Gil Vicente fez foi restabelecer “o predomínio do texto literário sobre o espetáculo, sobre a riqueza cenográfica”.

“A aparição do teatro vicentino veio quebrar a estética dos olhos e do ouvido para impor uma estética da reflexão. (...) Sem tradição dramática atrás de si, Gil Vicente volta-se, então, para a experiência espanhola de Juan del Encina sobretudo, buscando aí as sugestões iniciais para o seu teatro pastoril da primeira fase. (...) Gil Vicente pratica um teatro moldado na pastoral dramática espanhola, inclusive pela língua. O Auto da Índia, embora bilíngüe, inaugura o uso da língua nacional que passa a competir com a castelhana ao mesmo tempo que dá início ao seu teatro de crítica social e se desprende do modelo espanhol. (...) Gil Vicente não só associa ao teatro religioso o de crítica social iniciado em 1509, mas reabilita o próprio mistério, gênero que estava em vias de desaparecer. (...) Entre 1521 e 1524 Gil Vicente orienta-se de preferência num teatro alegórico e romanesco, e neste realiza a sua obra mais perfeita com a criação da Farsa de Inês Pereira. A partir daí, a produção não assume uma tendência estética definida, mas pratica as formas e tipos já experimentados nas fases anteriores: teatro alegórico e teatro de crítica social. (...) A cenografia vicentina era muito pobre, embora não tenhamos hoje elementos para reconstituí-la. Representados os seus autos nos paços reais da Ribeira, o mais das vezes, em que a família real se postava sobre um estrado no extremo oposto da representação e os demais espectadores formavam no semicírculo, o palco vicentino situava-se no mesmo plano, e os cenários reduziam-se ao simulacro ou à mera indicação de uma porta, uma janela ou pouco mais. Apenas a indumentária e a expressão lingüística poderiam oferecer uma caracterização dos personagens. O que o seu teatro perdia em cenografia, ganhava, por outro lado, literariamente, pois subia para primeiro plano a palavra, no diálogo ou no recheio poético da peça.”

Gil Vicente fustiga “de forma impiedosa toda a sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei, o alto clero, até a mais baixa classe social: os feiticeiros, as alcoviteiras e os agiotas. A galeria de tipos é riquíssima e variada; os vícios da época são incontáveis e de toda a espécie: ridiculariza a imperícia dos médicos na Farsa dos Físicos; as práticas de feitiçaria no Auto das Fadas etc. (...) Gil Vicente nunca atacava instituições, atacava, sim, os homens que nela prevaricavam. Na sátira ao clero, cuja soltura de costumes — desde a simonia à vida amancebada — vinha-se agravando a partir dos fins da Idade Média, Gil Vicente não fazia mais do que colaborar com a própria Igreja no trabalho de preservação dos inocentes e de recuperação dos religiosos transviados.”

Importante ressaltar que no teatro de Gil Vicente há números de canto e dança. Conforme escreve Spina: “A poesia de Gil Vicente não reside apenas na forma com que deu corpo ao seu teatro; está sobretudo nos grandes momentos líricos em que mergulham muitas de suas personagens (...); está no recheio musical de suas cantigas tradicionais (desde as primitivas paralelísticas aos vilancetes tão em voga nos fins da Idade Média); está, também nas admiráveis descrições da natureza. (...) A “sucessão das cenas como um teatro de revista”.


Gil Vicente é muito mais realista do que Camões, que nos Lusíadas colocava como heróis os reis e membros da aristocracia portuguesa ou os deuses grego-romanos. Segundo Spina: “Se Camões expressa a grandeza do homem de Quinhentos, a aventura do espaço e a superação das forças adversas da Natureza, Gil Vicente procura exprimir as misérias da vida, o homem na sua pequenez, o homem preso às realidades terrenas, o homem que precisa purificar-se para a salvação de sua alma. O que os aproxima é o sentimento cristão: no Épico, expresso pela consciência de cruzada a que se destina o seu povo na dilatação da Fé; no dramaturgo, subentendido no efeito purificador de sua arte, a ensinar a renúncia e propor o caminho que leva à salvação. (...) “Se Gil Vicente procura, pois, retratar ao vivo a sociedade coetânea, as misérias morais e políticas de então, é perfeitamente explicável que, dentro deste programa previamente traçado para o seu teatro, não se ajustava o elogio do homem renascentista, a exaltação dos valores épicos, do heroísmo embriagador dos homens de Quinhentos.”


Antônio José Saraiva divide as peças vicentinas em três categorias: alegoria, quadro (ou episódio) e narrativa.

“Os autos (que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco (mas preferencialmente devoto e com personagens alegóricas) desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos ‘mistérios’, aos ‘dramas litúrgicos’ e às ‘moralidades’), portanto, ligadas ao teatro litúrgico europeu.”

“Para se ter uma idéia da formação do auto e da sua evolução na literatura peninsular, é preciso pensar na existência simultânea de um teatro profano, embora conhecido apenas através de alusões de autores medievais e de proibições constantes nos corpos legislativos da época (...). Nelas se proíbe aos clérigos fazerem os chamados ‘jogos de escárnios’, peças de caráter burlesco e destinadas às camadas populares. (...) Algumas delas assumiam a forma de paródias religiosas e chegavam mesmo a ser representadas nos claustros das igrejas — consoante se infere das próprias proibições alfonsinas.”

“A infiltração gradual de elementos profanos no teatro litúrgico, que propiciou a transladação destas representações da igreja para a praça pública nos fins da Idade Média, veio ampliar a primitiva feição religiosa do auto, contaminando-a de elementos satíricos — bem visíveis ainda em várias peças do teatro devoto de Gil Vicente.”

 “Os primitivos autos destinavam-se a celebrar as festividades religiosas do Advento, da Natividade, dos Reis, da Páscoa, do Corpus e das comemorações hagiográficas, em suma, do Nascimento e da Morte do Senhor. (...) Nestas representações entrelaçavam-se cenas pastoris e alegóricas com números de canto, diálogo e baile. (...) Mas é com Gil Vicente que o auto se define e se caracteriza como forma dramática, atingindo com ele o seu esplendor no século XVI.”

“A música e a dança entrelaçavam-se frequentemente nos autos como ingredientes de alta importância, embora a declamação constituísse a parte predominante. A música ou era vocal a solo e em conjunto, ordinariamente acompanhada por instrumentos, ou era puramente instrumental. (...)Gil Vicente trazia para o campo literário todo o caudal lírico da tradição folclórica portuguesa, nos cantares das serranas, nas canções de romaria e nos saborosos vilancetes e romances, inclusive em sua primitiva estrutura paralelística.” Uso da “medida velha”, o verso redondilho maior ou menor, de sete ou cinco sílabas.

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