domingo, 9 de fevereiro de 2014

A POESIA TROVADORESCA (CONTINUAÇÃO)



Segismundo Spina, no livro Presença da literatura portuguesa -- A era medieval escreve:

“Pelo assunto, poderemos classificar os cantares d’amigo em cantares d’amigo exclusivamente amorosos, em que a donzela nos narra a separação do amigo e as circunstâncias que envolvem a partida; cantares de romaria, em que a donzela convida companheiras, a irmã ou mesmo a mãe para peregrinação a santuários, importante ponto de referência para encontros e bailados; pastorelas (que alguns preferem incluir entre os cantares d’amor porque fala primeiro o namorado, e é assim que preceitua a Arte de Trovar), nas quais o ambiente é rústico, não palaciano como no cantar d’amor (...); bailadas, que versam o tema da dança e os incidentes sentimentais que ela suscita; marinhas ou barcarolas, cujo temário é extraído da vida marítima. (...) Criações nacionais, sem correspondentes em outras literaturas, as barcarolas exprimem com todo o encanto a experiência de um povo criado à beira-mar.”

“O tema constante desses cantares — e por isso mesmo monótono — é a coita, a paixão vivida pelo homem que está a serviço de uma dama. O trovador se compraz, então, em viver de um amor insatisfeito, ocasionado pela incorrespondência da mulher, e em analisar nos seus pormenores de causa e efeito o seu drama passional. A mulher torna-se, assim, a dame sans merci, a dona impiedosa, obstinadamente inacessível às solicitações do trovador amante.”

“Se os cantares d’amigo se caracterizam por um doce realismo, os cantares d’amor aparecem dominados por um halo de idealismo, em que a mulher muitas vezes atinge a abstração.”

“Esta poesia de Entre-Douro-e-Minho, que aparece compilada no Cancioneiro da Ajuda, no da Vaticana e no de Colloci-Brancuti (hoje Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa), não se reduz à poesia lírica exclusivamente: outra modalidade poética, que percorre estes cancioneiros, é a que traz o nome de cantigas d’escárnio e maldizer, de intenção satírica, cuja denominação se explica pelo fato de o trovador invocar ou não o nome da pessoa escarnecida.”

 “Estas cantigas apresentam, do ponto de vista sociológico, não estético, um interesse maior que o das outras formas da poesia lírica, em virtude do seu conteúdo informativo — histórico e social. Dado o caráter escatológico da maioria destas composições, durante muito tempo a crítica não voltou os olhos para a interpretação dessa outra face do gênio poético galego-português.”

Citações do artigo A literatura medieval. A poesia, de Esther de Lemos (Gulbenkian):

“A primitiva poesia em galego-português não pertence exclusivamente à nossa literatura nacional, não é ainda estritamente ‘literatura portuguesa’. (...) E assim acontece por exemplo que uma corte como a de Castela e Leão, onde se falava no século XIII a modalidade arcaica do castelhano e se utilizava essa língua para escrever prosa, adotou como língua do lirismo o galego-português e cultivou o gênero de poesia a que chamamos galego-portuguesa. De modo que as composições incluídas nas coleções da poesia portuguesa arcaica não pertencem exclusivamente a poetas portugueses ou galegos, mas também a poetas castelhanos,  leoneses e de outros pontos da Península.”

 “Na Galiza, cedo liberta do domínio árabe, aberta às influências de além-Pirineus através da grande rota das peregrinações a Santiago de Compostela (o santuário de maior nomeada na Europa Ocidental durante a Idade Média), parece ter florescido já muito antes da fundação da nacionalidade portuguesa, uma poesia de inspiração tradicional, folclórica, cultivada sobretudo pelos jograis —  poetas e músicos profissionais, muitos deles antigos clérigos, que se exibiam em feiras e romarias  e eram também recebidos e acarinhados nas cortes dos reis e grandes senhores.”

(...)

 “Os jograis galegos teriam tido assim o mérito de recolher, aproveitar, difundir e por fim fixar para a forma escrita essa tradição oral primitiva, vinda do fundo do tempo e da eterna alma feminina.”

 “A essa poesia jogralesca de fundo tradicional veio, entretanto, sobrepor-se uma influência estrangeira, bem patente e documentada na poesia das coleções que chegaram até nós: a influência do lirismo provençal.”

 “Na cansó (canção) de amor provençal, o trovador celebra os raros dons morais e físicos da senhora a quem diz amar e servir com total devoção; proclama a grandeza desse amor e exulta por poder cantar tão nobre sentimento e tão excelsa senhora. Fá-lo usando uma linguagem polida e escolhida, e uma métrica de grande variedade e riqueza.”

Essa arte poética baseava-se no código do amor cortês (amor à moda da corte), “que implica uma série de regras rígidas, um formulário do serviço do perfeito namorado. O segredo quanto à identidade da dama celebrada — necessário até porque o trovador provençal cantava geralmente um amor proibido, pois dirigia sempre as suas homenagens a senhoras casadas; a mesura, qualidade complexa dos que amam ou merecem o amor — feita de boas maneiras, prudência, moderação; a renúncia a todo o prazer que seja para a dama causa de desgosto; a fidelidade e constância sem limites; o sentimento de que amar é o supremo bem e de que nada se deve esperar em troca do amor puro: eis outros tantos tópicos desse amor cortês que informava o lirismo vindo da Provença.”

“O Cancioneiro da Ajuda, assim chamado por se encontrar atualmente na biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, manuscrito em pergaminho, com letra dos finais do século XIII ou começos do XIV e formosas iluminuras que representam figuras de músicos, jograis e soldadeiras (isto é, bailarinas). A seguir às poesias encontram-se espaços em branco, destinados à notação da música, que não chegou a ser copiada, pois o manuscrito ficou inacabado (...). O Cancioneiro da Ajuda reúne composições dos autores mais antigos da poesia galego-portuguesa; essas composições pertencem exclusivamente ao gênero cantiga de amor.”

“Os outros dois cancioneiros são o Cancioneiro da Vaticana, que pertence à biblioteca do Palácio Pontifício de Roma, ou Biblioteca Vaticana, e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que pode ver-se hoje na Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa; um e outro são cópias tardias de um ou mais manuscritos já perdidos, cópias essas feitas em Itália no início do século XVI. Já não comportam notação musical e apresentam bastantes dificuldades de leituras.”

“Além desses três cancioneiros, cumpre mencionar outros que transmitem o Livro das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, rei de Castela e Leão. Trata-se de uma coletânea de poemas para cantar, dedicados à Virgem e inclui a notação musical de cada composição.”

 “Os cancioneiros galego-portugueses comportam, como se disse, três gêneros diversos de composições: a) cantigas de amor; b) cantigas de amigo; c) cantigas de escárnio e mal-dizer (poesia satírica).”

 Cantigas de amor

“Na cantiga de amor, o eu que se exprime é masculino: o poeta que como tal se apresenta frequentemente, fala da amada ou do amor que lhe dedica.”
  
“Na cantiga de amigo, o eu que se exprime é feminino: uma rapariga que nunca se apresenta como poetisa (e só algumas vezes canta cantigas alheias) fala do seu amigo (na linguagem dos trovadores esta palavra significa namorado) e do amor que lhe inspira ou sente por ele.”

“Na cansó de amor provençal, o sentimento dominante é o júbilo de amor, uma espécie de êxtase da alma e dos sentidos que transporta o poeta ao cantar a sua amada, mesmo quando tudo é adverso à realização do amor. (...) Na cantiga de amor galego-portuguesa essa luminosidade radical apagou-se. A palavra-chave já não é júbilo – é coita, a pena de amor, a mágoa incurável incessantemente repetida e lamentada.”

 “E embora o poeta continue a protestar, à moda provençal, que sofrer por tal senhora é o maior dos bens, escapam-lhe a cada passo amargas lamentações, e a imagem da morte é a que mais frequentemente lhe acode para exprimir o inefável tormento de amar sem recompensa e sem força para resistir ao fascínio. (...) Não raro, até esquecendo toda a mesura imposta pela disciplina da escola cortês, o trovador increpa Deus que permite tal sofrimento ou, suprema heresia, além de censurar amargamente a amada, sonha impossíveis vinganças contra aquela que o tortura e despreza.”

 “No reduzido número de situações e sentimentos da cantiga de amor galego-portuguesa avultam alguns que são absolutamente tópicos: a morte de amor, a que já aludimos; a mágoa da ausência ou da privação da vista da senhora; a timidez, quase pavor, que impede o poeta de revelar  à amada os seus sentimentos, e ainda o motivo insistentemente retomado dos olhos, instrumentos da paixão.
  
“A cantiga de amor galego-portuguesa caracteriza-se ainda (...) pelo caráter abstrato e descolorido da expressão que utiliza: nem apontamentos de paisagem, nem o recurso a imagens extraídas do mundo dos objetos materiais: tudo se passa na cabeça e no coração do amante. De modo que o vocabulário pouco variado tende sempre para a generalização, para a abstração da senhora tão louvada, não vislumbramos o mínimo traço que a individualize. É invariavelmente classificada com vocábulos ou expressões vagos como fermosa, de bon parecer, de bon semelhar, mas nenhuma feição do seu corpo, a não ser os olhos, cujo papel é mais simbólico do que real, se adivinha sequer.”

 “Quanto ao retrato psicológico, é um tipo único que reaparece na poesia de numerosos trovadores (...): a senhora tem bon sen (bom senso, bom pensar), sabe falar e rir melhor do que nenhuma outra, é leal, afável, de boas maneiras, de excelente reputação – em suma, comprida de todo o ben, ou seja, perfeita em tudo.”

 “O que o trovador faz, mais do que cantar a amada, é chorar a privação dela a que está condenado, dirigindo-lhe muitas vezes uma prece ferverosa; quase poderíamos dizer que, na cantiga de amor galego-portuguesa, a senhora é a grande ausente, de quem ignoramos quase tudo, e que só interessa como instrumento de tortura ou de impossível felicidade.” Pouco se sabe, também, das dimensões de tempo e espaço em que ocorre o drama desses amores.

 “Desta ausência de imagens, desta repetição de motivos, do predomínio de um vocabulário abstrato, resulta sem dúvida, à primeira leitura, uma certa impressão de secura, de descolorido e de pobreza.” Não se trataria, porém, de “indigência, mas de voluntário despojamento, na busca de uma expressão depuradamente intelectual”.

 “Quanto à técnica de versificação, a cantiga de amor galego-portuguesa fica sem dúvida muito atrás da riqueza e exuberância das formas provençais, às vezes rebuscadamente intrincadas.”

 “A forma mais culta, influenciada pela lição dos trovadores, é a da composição chamada cantiga de mestria: trata-se de um poema formado por várias estrofes, em geral três ou mais, sem refrão, e rematada com uma finda, isto é, um verso ou vários versos isolados em que se corrobora o sentido de toda a composição.”

Cantigas de amigo

A cantiga de amigo distingue-se da cantiga de amor por apresentar diferenças na “forma de encarar o amor, na linguagem utilizada, nos esquemas estróficos e rimáticos”.

“Este lirismo realiza-se em geral segundo um esquema estrófico e rimático muito peculiar, em que impera o princípio designado por paralelismo. Na poesia paralelística, a estrofe primitiva – um dístico, ou grupo de dois versos – repete-se na estrofe seguinte, com alteração apenas da palavra ou palavras finais. (...) O uso do refrão – um verso, ou versos, que se acrescenta ao dístico inicial e depois se repete, sempre igual, ao longo de todo o poema – completa quase invariavelmente o esquema destas cantigas. (...) Mas este simples esquema paralelístico complica-se em grande número de cantigas pela introdução do processo chamado na língua dos trovadores leixa-pren (isto é, deixa-toma ou larga-pega) que consiste, aproximadamente, à maneira das desgarradas populares ainda em uso, em começar cada estrofe repetindo o último verso de uma estrofe anterior

 “Os temas, extremamente simples, condizem com a pureza da forma: são pouco mais do que suspiros de mágoa ou exclamações de alegria, convites à dança e ao canto, interrogações ansiosas sobre uma ausência, protestos de amor até a morte, invocações da donzela às flores, às ondas, às aves e aos cervos do monte, a outras donzelas ou à mãe – numa efusão lírica em que o eu parece derramar-se e fundir-se nas coisas.”

 “Dentro do gênero cantiga de amigo não existe, é preciso notar, a homogeneidade acentuada que notamos dentro do gênero cantiga de amor.” Muitas dessas composições “apresentam fatura mais complexa, fogem geralmente à simplicidade do paralelismo anafórico das bailas; tratam o caso de amor com sutileza e argúcia, às vezes com dramatismo expressivo, outras, com um toque de ironia travessa.”

“Menos ricas em alusões a aspectos da natureza, estas cantigas fornecem alguns ligeiros apontamentos da vida quotidiana – expedições militares, treinos de armas, torneios poéticos, festas de boda, romarias, a ansiedade das longas ausências, as oportunidades de namoro, as relações familiares.”

Poesia satírica. Cantigas de escárnio e mal-dizer.

“A diferença entre esses dois subgêneros satíricos é que, na cantiga de maldizer, o trovador critica diretamente algum aspecto risível da realidade, sem esconder nem disfarçar o alvo das suas críticas, ao passo que na cantiga de escárnio procura fazê-lo ‘por palavras encobertas, que hajam dois entendimentos’, para usarmos uma frase da arte de trovar (...). Isto é, o escárnio comportaria, como elemento distintivo, um equívoco, um duplo sentido, que proporcionaria aos leitores o prazer de um jogo de interpretação.”

“A nossa poesia satírica só raramente se ergue às alturas de uma crítica dirigida a aspectos graves da vida em geral. Habitualmente, tende para a caricatura dos vícios e ridículos individuais, desde a beberronia, a soltura de costumes ou a avareza de uns, à disformidade física, ao mau gosto do traje ou à fastidiosa tagarelice de outros. Crítica anedótica, circunstancial, das fraquezas, misérias e vergonhas individuais, tem, frequentemente, um caráter grosseiro e obsceno.”

“A lamentação em termos genéricos sobre a decadência dos valores morais – verdade, lealdade, mesura – assume às vezes um tom grave; outras, mais travesso e ligeiro”, sendo que às vezes o alvo dessas críticas é o clero.

“Em todo este ciclo de cantigas, como aliás em outras sátiras do cancioneiro, se denuncia amargamente a quebra da grande virtude que fora o suporte moral e afetivo do mundo feudal: a virtude da lealdade, da fidelidade ao juramento feito.”

“Também a covardia dos homens de armas foi objeto de sátiras extremamente eficazes, produzidas sobretudo por Afonso X.”
As cantigas satíricas referem-se ainda à “miséria ou escassez da pequena nobreza empobrecida e pretensiosa, a ânsia de promoção dos burgueses e vilãos que desejam a todo custo enobrecer-se.”

“A poesia burlesca dos cancioneiros justamente pela pequenez cotidiana dos seus motivos, pela atenção aos aspectos mais humildes da vida – as refeições, o traje, os transportes, o dinheiro, as diversas ocupações domésticas etc. – constitui um precioso repertório de notícias sobre a vida quotidiana e a pequena história dos reinos cristãos da Península durante o século XIII.”

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