Segismundo Spina, no livro Presença da literatura portuguesa -- A era medieval escreve:
“Pelo assunto,
poderemos classificar os cantares d’amigo em cantares d’amigo exclusivamente
amorosos, em que a donzela nos narra a separação do amigo e as circunstâncias
que envolvem a partida; cantares de
romaria, em que a donzela convida companheiras, a irmã ou mesmo a mãe para
peregrinação a santuários, importante ponto de referência para encontros e
bailados; pastorelas (que alguns
preferem incluir entre os cantares d’amor porque fala primeiro o namorado, e é
assim que preceitua a Arte de Trovar),
nas quais o ambiente é rústico, não palaciano como no cantar d’amor (...); bailadas, que versam o tema da dança e
os incidentes sentimentais que ela suscita; marinhas
ou barcarolas, cujo temário é
extraído da vida marítima. (...) Criações
nacionais, sem correspondentes em outras literaturas, as barcarolas exprimem
com todo o encanto a experiência de um povo criado à beira-mar.”
“O tema
constante desses cantares — e por isso mesmo monótono — é a coita, a paixão vivida pelo homem
que está a serviço de uma dama. O trovador se compraz, então, em viver de
um amor insatisfeito, ocasionado pela
incorrespondência da mulher, e em analisar nos seus pormenores de causa
e efeito o seu drama passional. A mulher torna-se, assim, a dame sans merci, a dona impiedosa,
obstinadamente inacessível às solicitações do trovador amante.”
“Se os
cantares d’amigo se caracterizam por um doce realismo, os cantares
d’amor aparecem dominados por um halo de idealismo, em que a mulher
muitas vezes atinge a abstração.”
“Esta poesia
de Entre-Douro-e-Minho, que aparece compilada no Cancioneiro da Ajuda, no da Vaticana
e no de Colloci-Brancuti (hoje Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa),
não se reduz à poesia lírica exclusivamente: outra modalidade poética, que
percorre estes cancioneiros, é a que traz o nome de cantigas d’escárnio e maldizer,
de intenção satírica, cuja
denominação se explica pelo fato de o trovador invocar ou não o nome da pessoa
escarnecida.”
“Estas
cantigas apresentam, do ponto de vista sociológico, não estético, um interesse
maior que o das outras formas da poesia lírica, em virtude do seu conteúdo
informativo — histórico e social. Dado o caráter escatológico da maioria
destas composições, durante muito tempo a crítica não voltou os olhos para a
interpretação dessa outra face do gênio poético galego-português.”
Citações do artigo A literatura medieval. A poesia,
de Esther de Lemos (Gulbenkian):
“A primitiva
poesia em galego-português não
pertence exclusivamente à nossa literatura nacional, não é ainda estritamente
‘literatura portuguesa’. (...) E assim acontece por exemplo que uma corte como
a de Castela e Leão, onde se falava no século XIII a modalidade arcaica do
castelhano e se utilizava essa língua para escrever prosa, adotou como língua
do lirismo o galego-português e cultivou o gênero de poesia a que chamamos
galego-portuguesa. De modo que as composições incluídas nas coleções da poesia
portuguesa arcaica não pertencem exclusivamente a poetas portugueses ou
galegos, mas também a poetas castelhanos,
leoneses e de outros pontos da Península.”
(...)
Essa arte
poética baseava-se no código do amor cortês (amor à moda da corte), “que
implica uma série de regras rígidas, um formulário do serviço do perfeito
namorado. O segredo quanto à
identidade da dama celebrada — necessário até porque o trovador provençal
cantava geralmente um amor proibido, pois dirigia sempre as suas homenagens a
senhoras casadas; a mesura,
qualidade complexa dos que amam ou merecem o amor — feita de boas maneiras,
prudência, moderação; a renúncia a todo o prazer que seja para a dama causa de
desgosto; a fidelidade e constância sem limites; o sentimento de que amar é o
supremo bem e de que nada se deve esperar em troca do amor puro: eis outros
tantos tópicos desse amor cortês que informava o lirismo vindo da Provença.”
“O Cancioneiro da Ajuda, assim chamado por
se encontrar atualmente na biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, manuscrito
em pergaminho, com letra dos finais do século XIII ou começos do XIV e formosas
iluminuras que representam figuras de músicos, jograis e soldadeiras (isto é,
bailarinas). A seguir às poesias encontram-se espaços em branco, destinados à
notação da música, que não chegou a ser copiada, pois o manuscrito ficou
inacabado (...). O Cancioneiro da Ajuda reúne composições dos autores
mais antigos da poesia galego-portuguesa; essas composições pertencem
exclusivamente ao gênero cantiga de amor.”
“Os outros
dois cancioneiros são o Cancioneiro da
Vaticana, que pertence à biblioteca do Palácio Pontifício de Roma, ou
Biblioteca Vaticana, e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que pode ver-se
hoje na Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa; um e outro são
cópias tardias de um ou mais manuscritos já perdidos, cópias essas feitas em
Itália no início do século XVI. Já não comportam notação musical e apresentam
bastantes dificuldades de leituras.”
“Além desses
três cancioneiros, cumpre mencionar outros que transmitem o Livro das Cantigas
de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, rei de Castela e Leão. Trata-se de uma
coletânea de poemas para cantar, dedicados à Virgem e inclui a notação musical
de cada composição.”
“Na cantiga de
amor, o eu que se exprime é masculino: o poeta que como tal se apresenta
frequentemente, fala da amada ou do amor que lhe dedica.”
“Na cantiga de
amigo, o eu que se exprime é feminino: uma rapariga que nunca se apresenta como
poetisa (e só algumas vezes canta cantigas alheias) fala do seu amigo (na
linguagem dos trovadores esta palavra significa namorado) e do amor que lhe
inspira ou sente por ele.”
“Na cansó de amor provençal, o sentimento dominante é o júbilo de amor, uma espécie de êxtase
da alma e dos sentidos que transporta o poeta ao cantar a sua amada, mesmo
quando tudo é adverso à realização do amor. (...) Na cantiga de amor
galego-portuguesa essa luminosidade radical apagou-se. A palavra-chave já não é
júbilo – é coita, a pena de amor, a
mágoa incurável incessantemente repetida e lamentada.”
“E embora o
poeta continue a protestar, à moda provençal, que sofrer por tal senhora é o
maior dos bens, escapam-lhe a cada passo amargas lamentações, e a imagem
da morte é a que mais frequentemente lhe acode para exprimir o inefável
tormento de amar sem recompensa e sem força para resistir ao fascínio. (...)
Não raro, até esquecendo toda a mesura imposta pela disciplina da escola
cortês, o trovador increpa Deus que permite tal sofrimento ou,
suprema heresia, além de censurar amargamente a amada, sonha impossíveis
vinganças contra aquela que o tortura e despreza.”
“A cantiga de amor
galego-portuguesa caracteriza-se ainda (...) pelo caráter abstrato e
descolorido da expressão que utiliza: nem apontamentos de paisagem, nem o
recurso a imagens extraídas do mundo dos objetos materiais: tudo se passa na
cabeça e no coração do amante. De modo que o vocabulário pouco variado tende
sempre para a generalização, para a abstração da senhora tão louvada, não
vislumbramos o mínimo traço que a individualize. É invariavelmente classificada
com vocábulos ou expressões vagos como fermosa,
de bon parecer, de bon semelhar, mas nenhuma feição do seu corpo, a não ser
os olhos, cujo papel é mais simbólico do que real, se adivinha sequer.”
“Quanto ao
retrato psicológico, é um tipo único que reaparece na poesia de numerosos
trovadores (...): a senhora tem bon sen
(bom senso, bom pensar), sabe falar e rir melhor do que nenhuma outra, é leal,
afável, de boas maneiras, de excelente reputação – em suma, comprida de todo o ben, ou seja,
perfeita em tudo.”
Cantigas de amigo
A cantiga de
amigo distingue-se da cantiga de amor por apresentar diferenças na “forma de
encarar o amor, na linguagem utilizada, nos esquemas estróficos e rimáticos”.
“Este lirismo realiza-se
em geral segundo um esquema estrófico e rimático muito peculiar, em que impera
o princípio designado por paralelismo.
Na poesia paralelística, a estrofe primitiva – um dístico, ou grupo de dois
versos – repete-se na estrofe seguinte, com alteração apenas da palavra ou
palavras finais. (...) O uso do refrão
– um verso, ou versos, que se acrescenta ao dístico inicial e depois se repete,
sempre igual, ao longo de todo o poema – completa quase invariavelmente o
esquema destas cantigas. (...) Mas este simples esquema paralelístico
complica-se em grande número de cantigas pela introdução do processo chamado na
língua dos trovadores leixa-pren
(isto é, deixa-toma ou larga-pega) que consiste,
aproximadamente, à maneira das desgarradas populares ainda em uso, em começar cada estrofe repetindo o último
verso de uma estrofe anterior”
“Menos ricas em alusões a
aspectos da natureza, estas cantigas fornecem alguns ligeiros apontamentos da
vida quotidiana – expedições militares, treinos de armas, torneios poéticos,
festas de boda, romarias, a ansiedade das longas ausências, as oportunidades de
namoro, as relações familiares.”
Poesia satírica. Cantigas de escárnio e
mal-dizer.
“A diferença
entre esses dois subgêneros satíricos é que, na cantiga de maldizer, o trovador critica diretamente algum aspecto
risível da realidade, sem esconder nem disfarçar o alvo das suas críticas, ao
passo que na cantiga de escárnio
procura fazê-lo ‘por palavras encobertas, que hajam dois entendimentos’, para
usarmos uma frase da arte de trovar (...). Isto é, o escárnio comportaria, como
elemento distintivo, um equívoco, um duplo sentido, que proporcionaria aos
leitores o prazer de um jogo de interpretação.”
“A nossa
poesia satírica só raramente se ergue às alturas de uma crítica dirigida a
aspectos graves da vida em geral. Habitualmente , tende para a caricatura dos
vícios e ridículos individuais, desde a beberronia, a soltura de costumes ou a
avareza de uns, à disformidade física, ao mau gosto do traje ou à fastidiosa
tagarelice de outros. Crítica anedótica, circunstancial, das fraquezas,
misérias e vergonhas individuais, tem, frequentemente, um caráter grosseiro e
obsceno.”
“A lamentação
em termos genéricos sobre a decadência dos valores morais – verdade, lealdade,
mesura – assume às vezes um tom grave; outras, mais travesso e ligeiro”, sendo
que às vezes o alvo dessas críticas é o clero.
“Em todo este
ciclo de cantigas, como aliás em outras sátiras do cancioneiro, se denuncia
amargamente a quebra da grande virtude que fora o suporte moral e afetivo do
mundo feudal: a virtude da lealdade, da fidelidade ao juramento feito.”
“Também a
covardia dos homens de armas foi objeto de sátiras extremamente eficazes,
produzidas sobretudo por Afonso X.”
As cantigas
satíricas referem-se ainda à “miséria ou escassez da pequena nobreza
empobrecida e pretensiosa, a ânsia de promoção dos burgueses e vilãos que
desejam a todo custo enobrecer-se.”
“A poesia burlesca dos
cancioneiros justamente pela pequenez cotidiana dos seus motivos, pela atenção
aos aspectos mais humildes da vida – as refeições, o traje, os transportes, o
dinheiro, as diversas ocupações domésticas etc. – constitui um precioso
repertório de notícias sobre a vida quotidiana e a pequena história dos reinos
cristãos da Península durante o século XIII.”
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