“O período histórico em que se situa Gil Vicente é chamado de Humanismo, ou Segunda Época Medieval ou Primeiro Renascimento”, escreve Frederico Barbosa. Este período se inicia em Portugal “em 1418, quando Fernão Lopes (cronista, considerado o pai da História Portuguesa) é nomeado, pelo rei D. Duarte, Guarda-Mor da Torre do Tombo (o mais importante arquivo histórico de Portugal).” Como era esse novo tempo, que foi um marco na cultura ocidental? Segundo Frederico Barbosa, esta é “a época das grandes navegações, descobertas, invenções. No interior dos palácios ainda persistia uma nobreza tradicional, de estrutura feudal, mas que já estava decadente. Nas ruas, porém, fervia a agitação do comércio, de que se originou uma nova classe social, a burguesia, e uma nova ideologia das relações humanas centrada no lucro e no saber.”
Embora contemporâneo do Renascimento, que
valorizava a ciência, a filosofia e a arte, os estudos clássicos da cultura
greco-romana e que colocava o homem no centro de todas as coisas (o chamado antropocentrismo, diferente da visão teocêntrica da Idade Média, que considerava
Deus como o principal valor cultural), Gil Vicente permanece com um pensamento
próximo ao medieval: ele é um homem em conflito com a sua época. Conforme
escreve Segismundo Spina, “não foi um humanista, nem um espírito representativo
das influências italianizantes e clássicas: permaneceu um homem do outono da
Idade Média, de cultura escolar e teológica, divorciado do saber científico,
oferecendo uma concepção teocêntrica do mundo, um ideal social hierárquico e
uma ética fortemente baseada na ascese. (...) Gil Vicente permaneceu um homem
do povo, de profundas raízes nas tradições folclóricas e poéticas da sua terra,
cujo mundo procurou levar para o tablado sem o processo clássico da seleção dos
temas. (...) Na sua obra está evidente uma concepção cristianíssima da vida, e
da mais rigorosa ortodoxia. A sátira e as peças pias estão continuamente a
serviço do missionário, preocupado na edificação do homem e na sua subordinação
à Providência”.
VIDA DE
GIL VICENTE
Sabemos pouco sobre a vida de Gil Vicente;
ignora-se o local de seu nascimento, e mesmo a data, que pode ter ocorrido em
1465 ou 1466. Teria falecido entre 1536 e 1540. Casou-se duas vezes, primeiro
com Branca Bezerra, depois com Melícia Rodrigues; sua filha Paula Vicente foi
música e aia da infanta D. Maria, e seu filho Luís Vicente reuniu a produção
teatral do pai e em 1562 a
publicou com o título de Copilaçam de
todalas obras de Gil Vicente (da
qual algumas peças foram excluídas, por censura da Inquisição; outras
desapareceram). O autor foi considerado, por Menendez y Pelayo, como o maior
artista da Europa de seu tempo. Conforme escreve Segismundo Spina: “tendo-se em
vista uma relativa extensão de conhecimentos que a sua obra revela —
especialmente teológicos e filosóficos —, Gil Vicente deve ter freqüentado
alguma escola do tempo, ou, na melhor hipótese de Carolina Michaelis, ter sido
orientado por algum religioso culto quando o poeta viveu a sua adolescência em
Beira. (...) Encarregado da preparação das festas palacianas e mestre da
balança da Casa da Moeda, desfrutou uma situação bem cômoda e propícia a
garantir a longa trajetória dramática de 34 anos, desde a sua primeira peça, A Visitação do Vaqueiro (1502) à representação
de uma comédia em Évora, intitulada Floresta
de Enganos (1536).” Gil Vicente foi
incluído no Cancioneiro Geral de
García de Resende, uma das coletâneas mais importantes da poesia portuguesa do
período.
TEATRO
DE GIL VICENTE
Sobre o teatro de Gil Vicente escreve Segismundo
Spina:
“Diferentemente do que sucede com o teatro
clássico, o teatro vicentino não tem por propósito apresentar conflitos
psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro
de) eles, mas um teatro de sátira social, um teatro de idéias, um teatro
polêmico. No palco vicentino não perpassam caracteres individuais, mas tipos
sociais agindo segundo a lógica da sua condição fixada de uma vez para sempre;
e outros entes personificados. Especificando, poderíamos distinguir: a) tipos
humanos, como o Pastor (...), o Camponês, o Escudeiro (...); b) personificações
alegóricas, como Roma, representando a Santa Sé, a Fama Portuguesa, as quatro
Estações; c) personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os
deuses greco-romanos; d) figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a
hierarquia dos Anjos e a Alma; e) (...) o Parvo, que é um tipo tradicional
europeu. (...) O tipo mais insistentemente observado e satirizado por Gil
Vicente é sem dúvida o clérigo, e especialmente o frade, presente em todos os
setores da sociedade portuguesa (...). Gil Vicente censura nele a
desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a
austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres.”
Gil Vicente nunca critica instituições, como a
monarquia ou a Igreja Católica, mas os vícios que corroem a sociedade de seu
tempo. No Auto da Barca do Inferno,
por exemplo, os personagens que embarcam no navio que conduz ao Inferno
representam pecados como a luxúria, a ira, a soberba, a avareza etc. Por isso
mesmo dizemos que é um teatro alegórico,
pois faz a representação do pensamento por meio de símbolos, imagens metáforas.
Segismundo Spina observa que
“Antes do aparecimento de Gil Vicente, não podemos
falar num teatro em Portugal, não obstante possamos respingar algumas notícias
de dramaturgia religiosa durante a Idade Média e alguns documentos de teatro
alegórico na época de D. João II, um teatro à base de pura cenografia e em que
a palavra literária esteve quase inteiramente ausente.” O que havia, antes de
Gil Vicente, era “um teatro inorgânico, desprovido de elementos literários
(...), um teatro puramente cenográfico, em que o aparato alegórico dominava a
representação”. (fins do século XV, reinado de D. João II.) O que Gil Vicente
fez foi restabelecer “o predomínio do texto literário sobre o espetáculo, sobre
a riqueza cenográfica”.
“A aparição do teatro vicentino veio quebrar a
estética dos olhos e do ouvido para impor uma estética da reflexão. (...) Sem
tradição dramática atrás de si, Gil Vicente volta-se, então, para a experiência
espanhola de Juan del Encina sobretudo, buscando aí as sugestões iniciais para
o seu teatro pastoril da primeira fase. (...) Gil Vicente pratica um teatro moldado
na pastoral dramática espanhola, inclusive pela língua. O Auto da Índia, embora bilíngüe, inaugura o uso da língua nacional
que passa a competir com a castelhana ao mesmo tempo que dá início ao seu
teatro de crítica social e se desprende do modelo espanhol. (...) Gil Vicente
não só associa ao teatro religioso o de crítica social iniciado em 1509, mas
reabilita o próprio mistério, gênero
que estava em vias de desaparecer. (...) Entre 1521 e 1524 Gil Vicente
orienta-se de preferência num teatro alegórico e romanesco, e neste realiza a
sua obra mais perfeita com a criação da Farsa
de Inês Pereira. A partir daí, a
produção não assume uma tendência estética definida, mas pratica as formas e
tipos já experimentados nas fases anteriores: teatro alegórico e teatro de
crítica social. (...) A cenografia vicentina era muito pobre, embora não
tenhamos hoje elementos para reconstituí-la. Representados os seus autos nos
paços reais da Ribeira, o mais das vezes, em que a família real se postava
sobre um estrado no extremo oposto da representação e os demais espectadores
formavam no semicírculo, o palco vicentino situava-se no mesmo plano, e os
cenários reduziam-se ao simulacro ou à mera indicação de uma porta, uma janela
ou pouco mais. Apenas a indumentária e a expressão lingüística poderiam
oferecer uma caracterização dos personagens. O que o seu teatro perdia em
cenografia, ganhava, por outro lado, literariamente, pois subia para primeiro
plano a palavra, no diálogo ou no recheio poético da peça.”
Gil Vicente fustiga “de forma impiedosa toda a
sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei, o alto clero, até a mais baixa
classe social: os feiticeiros, as alcoviteiras e os agiotas. A galeria de tipos
é riquíssima e variada; os vícios da época são incontáveis e de toda a espécie:
ridiculariza a imperícia dos médicos na Farsa
dos Físicos; as práticas de
feitiçaria no Auto das Fadas etc.
(...) Gil Vicente nunca atacava instituições, atacava, sim, os homens que nela
prevaricavam. Na sátira ao clero, cuja soltura de costumes — desde a simonia à
vida amancebada — vinha-se agravando a partir dos fins da Idade Média, Gil
Vicente não fazia mais do que colaborar com a própria Igreja no trabalho de
preservação dos inocentes e de recuperação dos religiosos transviados.”
Importante ressaltar que no teatro de Gil Vicente
há números de canto e dança. Conforme escreve Spina: “A poesia de Gil Vicente
não reside apenas na forma com que deu corpo ao seu teatro; está sobretudo nos
grandes momentos líricos em que mergulham muitas de suas personagens (...);
está no recheio musical de suas cantigas tradicionais (desde as primitivas
paralelísticas aos vilancetes tão em voga nos fins da Idade Média); está,
também nas admiráveis descrições da natureza. (...) A “sucessão das cenas como
um teatro de revista”.
Gil Vicente é muito mais realista do que Camões,
que nos Lusíadas colocava como heróis
os reis e membros da aristocracia portuguesa ou os deuses grego-romanos.
Segundo Spina: “Se Camões expressa a grandeza do homem de Quinhentos, a
aventura do espaço e a superação das forças adversas da Natureza, Gil Vicente
procura exprimir as misérias da vida, o homem na sua pequenez, o homem preso às
realidades terrenas, o homem que precisa purificar-se para a salvação de sua
alma. O que os aproxima é o sentimento
cristão: no Épico, expresso pela consciência de cruzada a que se destina o
seu povo na dilatação da Fé; no dramaturgo, subentendido no efeito purificador
de sua arte, a ensinar a renúncia e propor o caminho que leva à salvação. (...)
“Se Gil Vicente procura, pois, retratar ao vivo a sociedade coetânea, as
misérias morais e políticas de então, é perfeitamente explicável que, dentro
deste programa previamente traçado para o seu teatro, não se ajustava o elogio
do homem renascentista, a exaltação dos valores épicos, do heroísmo embriagador
dos homens de Quinhentos.”
Antônio José Saraiva divide as peças vicentinas em
três categorias: alegoria, quadro (ou episódio) e narrativa.
“Os autos
(que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem
apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou
burlesco (mas preferencialmente devoto e com personagens alegóricas)
desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram,
adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI.
Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos
‘mistérios’, aos ‘dramas litúrgicos’ e às ‘moralidades’), portanto, ligadas ao
teatro litúrgico europeu.”
“Para se ter uma idéia da formação do auto e da
sua evolução na literatura peninsular, é preciso pensar na existência
simultânea de um teatro profano, embora conhecido apenas através de alusões de
autores medievais e de proibições constantes nos corpos legislativos da época
(...). Nelas se proíbe aos clérigos fazerem os chamados ‘jogos de escárnios’,
peças de caráter burlesco e destinadas às camadas populares. (...) Algumas
delas assumiam a forma de paródias religiosas e chegavam mesmo a ser
representadas nos claustros das igrejas — consoante se infere das próprias
proibições alfonsinas.”
“A infiltração gradual de elementos profanos no
teatro litúrgico, que propiciou a transladação destas representações da igreja
para a praça pública nos fins da Idade Média, veio ampliar a primitiva feição
religiosa do auto, contaminando-a de elementos satíricos — bem visíveis ainda
em várias peças do teatro devoto de Gil Vicente.”
“Os primitivos autos destinavam-se a celebrar as
festividades religiosas do Advento, da Natividade, dos Reis, da Páscoa, do
Corpus e das comemorações hagiográficas, em suma, do Nascimento e da Morte do
Senhor. (...) Nestas representações entrelaçavam-se cenas pastoris e alegóricas
com números de canto, diálogo e baile. (...) Mas é com Gil Vicente que o auto
se define e se caracteriza como forma dramática, atingindo com ele o seu
esplendor no século XVI.”
“A música e a dança entrelaçavam-se frequentemente
nos autos como ingredientes de alta importância, embora a declamação
constituísse a parte predominante. A música ou era vocal a solo e em conjunto,
ordinariamente acompanhada por instrumentos, ou era puramente instrumental.
(...)Gil Vicente trazia para o campo literário todo o caudal lírico da tradição
folclórica portuguesa, nos cantares das serranas, nas canções de romaria e nos
saborosos vilancetes e romances, inclusive em sua primitiva estrutura
paralelística.” Uso da “medida velha”, o verso redondilho maior ou menor, de
sete ou cinco sílabas.