quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O TEATRO DE GIL VICENTE




“O período histórico em que se situa Gil Vicente é chamado de Humanismo, ou Segunda Época Medieval ou Primeiro Renascimento”, escreve Frederico Barbosa. Este período se inicia em Portugal “em 1418, quando Fernão Lopes (cronista, considerado o pai da História Portuguesa) é nomeado, pelo rei D. Duarte, Guarda-Mor da Torre do Tombo (o mais importante arquivo histórico de Portugal).” Como era esse novo tempo, que foi um marco na cultura ocidental? Segundo Frederico Barbosa, esta é “a época das grandes navegações, descobertas, invenções. No interior dos palácios ainda persistia uma nobreza tradicional, de estrutura feudal, mas que já estava decadente. Nas ruas, porém, fervia a agitação do comércio, de que se originou uma nova classe social, a burguesia, e uma nova ideologia das relações humanas centrada no lucro e no saber.”

Embora contemporâneo do Renascimento, que valorizava a ciência, a filosofia e a arte, os estudos clássicos da cultura greco-romana e que colocava o homem no centro de todas as coisas (o chamado antropocentrismo, diferente da visão teocêntrica da Idade Média, que considerava Deus como o principal valor cultural), Gil Vicente permanece com um pensamento próximo ao medieval: ele é um homem em conflito com a sua época. Conforme escreve Segismundo Spina, “não foi um humanista, nem um espírito representativo das influências italianizantes e clássicas: permaneceu um homem do outono da Idade Média, de cultura escolar e teológica, divorciado do saber científico, oferecendo uma concepção teocêntrica do mundo, um ideal social hierárquico e uma ética fortemente baseada na ascese. (...) Gil Vicente permaneceu um homem do povo, de profundas raízes nas tradições folclóricas e poéticas da sua terra, cujo mundo procurou levar para o tablado sem o processo clássico da seleção dos temas. (...) Na sua obra está evidente uma concepção cristianíssima da vida, e da mais rigorosa ortodoxia. A sátira e as peças pias estão continuamente a serviço do missionário, preocupado na edificação do homem e na sua subordinação à Providência”.


VIDA DE GIL VICENTE

Sabemos pouco sobre a vida de Gil Vicente; ignora-se o local de seu nascimento, e mesmo a data, que pode ter ocorrido em 1465 ou 1466. Teria falecido entre 1536 e 1540. Casou-se duas vezes, primeiro com Branca Bezerra, depois com Melícia Rodrigues; sua filha Paula Vicente foi música e aia da infanta D. Maria, e seu filho Luís Vicente reuniu a produção teatral do pai e em 1562 a publicou com o título de Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (da qual algumas peças foram excluídas, por censura da Inquisição; outras desapareceram). O autor foi considerado, por Menendez y Pelayo, como o maior artista da Europa de seu tempo. Conforme escreve Segismundo Spina: “tendo-se em vista uma relativa extensão de conhecimentos que a sua obra revela — especialmente teológicos e filosóficos —, Gil Vicente deve ter freqüentado alguma escola do tempo, ou, na melhor hipótese de Carolina Michaelis, ter sido orientado por algum religioso culto quando o poeta viveu a sua adolescência em Beira. (...) Encarregado da preparação das festas palacianas e mestre da balança da Casa da Moeda, desfrutou uma situação bem cômoda e propícia a garantir a longa trajetória dramática de 34 anos, desde a sua primeira peça, A Visitação do Vaqueiro (1502) à representação de uma comédia em Évora, intitulada Floresta de Enganos (1536).”  Gil Vicente foi incluído no Cancioneiro Geral de García de Resende, uma das coletâneas mais importantes da poesia portuguesa do período.


TEATRO DE GIL VICENTE

Sobre o teatro de Gil Vicente escreve Segismundo Spina:

“Diferentemente do que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem por propósito apresentar conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro de) eles, mas um teatro de sátira social, um teatro de idéias, um teatro polêmico. No palco vicentino não perpassam caracteres individuais, mas tipos sociais agindo segundo a lógica da sua condição fixada de uma vez para sempre; e outros entes personificados. Especificando, poderíamos distinguir: a) tipos humanos, como o Pastor (...), o Camponês, o Escudeiro (...); b) personificações alegóricas, como Roma, representando a Santa Sé, a Fama Portuguesa, as quatro Estações; c) personagens bíblicas e míticas, como os Profetas e Sibilas, os deuses greco-romanos; d) figuras teológicas, como o Diabo, ou Diabos, a hierarquia dos Anjos e a Alma; e) (...) o Parvo, que é um tipo tradicional europeu. (...) O tipo mais insistentemente observado e satirizado por Gil Vicente é sem dúvida o clérigo, e especialmente o frade, presente em todos os setores da sociedade portuguesa (...). Gil Vicente censura nele a desconformidade entre os atos e os ideais, pois, em lugar de praticar a austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres.”

Gil Vicente nunca critica instituições, como a monarquia ou a Igreja Católica, mas os vícios que corroem a sociedade de seu tempo. No Auto da Barca do Inferno, por exemplo, os personagens que embarcam no navio que conduz ao Inferno representam pecados como a luxúria, a ira, a soberba, a avareza etc. Por isso mesmo dizemos que é um teatro alegórico, pois faz a representação do pensamento por meio de símbolos, imagens metáforas.


Segismundo Spina observa que


“Antes do aparecimento de Gil Vicente, não podemos falar num teatro em Portugal, não obstante possamos respingar algumas notícias de dramaturgia religiosa durante a Idade Média e alguns documentos de teatro alegórico na época de D. João II, um teatro à base de pura cenografia e em que a palavra literária esteve quase inteiramente ausente.” O que havia, antes de Gil Vicente, era “um teatro inorgânico, desprovido de elementos literários (...), um teatro puramente cenográfico, em que o aparato alegórico dominava a representação”. (fins do século XV, reinado de D. João II.) O que Gil Vicente fez foi restabelecer “o predomínio do texto literário sobre o espetáculo, sobre a riqueza cenográfica”.

“A aparição do teatro vicentino veio quebrar a estética dos olhos e do ouvido para impor uma estética da reflexão. (...) Sem tradição dramática atrás de si, Gil Vicente volta-se, então, para a experiência espanhola de Juan del Encina sobretudo, buscando aí as sugestões iniciais para o seu teatro pastoril da primeira fase. (...) Gil Vicente pratica um teatro moldado na pastoral dramática espanhola, inclusive pela língua. O Auto da Índia, embora bilíngüe, inaugura o uso da língua nacional que passa a competir com a castelhana ao mesmo tempo que dá início ao seu teatro de crítica social e se desprende do modelo espanhol. (...) Gil Vicente não só associa ao teatro religioso o de crítica social iniciado em 1509, mas reabilita o próprio mistério, gênero que estava em vias de desaparecer. (...) Entre 1521 e 1524 Gil Vicente orienta-se de preferência num teatro alegórico e romanesco, e neste realiza a sua obra mais perfeita com a criação da Farsa de Inês Pereira. A partir daí, a produção não assume uma tendência estética definida, mas pratica as formas e tipos já experimentados nas fases anteriores: teatro alegórico e teatro de crítica social. (...) A cenografia vicentina era muito pobre, embora não tenhamos hoje elementos para reconstituí-la. Representados os seus autos nos paços reais da Ribeira, o mais das vezes, em que a família real se postava sobre um estrado no extremo oposto da representação e os demais espectadores formavam no semicírculo, o palco vicentino situava-se no mesmo plano, e os cenários reduziam-se ao simulacro ou à mera indicação de uma porta, uma janela ou pouco mais. Apenas a indumentária e a expressão lingüística poderiam oferecer uma caracterização dos personagens. O que o seu teatro perdia em cenografia, ganhava, por outro lado, literariamente, pois subia para primeiro plano a palavra, no diálogo ou no recheio poético da peça.”

Gil Vicente fustiga “de forma impiedosa toda a sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei, o alto clero, até a mais baixa classe social: os feiticeiros, as alcoviteiras e os agiotas. A galeria de tipos é riquíssima e variada; os vícios da época são incontáveis e de toda a espécie: ridiculariza a imperícia dos médicos na Farsa dos Físicos; as práticas de feitiçaria no Auto das Fadas etc. (...) Gil Vicente nunca atacava instituições, atacava, sim, os homens que nela prevaricavam. Na sátira ao clero, cuja soltura de costumes — desde a simonia à vida amancebada — vinha-se agravando a partir dos fins da Idade Média, Gil Vicente não fazia mais do que colaborar com a própria Igreja no trabalho de preservação dos inocentes e de recuperação dos religiosos transviados.”

Importante ressaltar que no teatro de Gil Vicente há números de canto e dança. Conforme escreve Spina: “A poesia de Gil Vicente não reside apenas na forma com que deu corpo ao seu teatro; está sobretudo nos grandes momentos líricos em que mergulham muitas de suas personagens (...); está no recheio musical de suas cantigas tradicionais (desde as primitivas paralelísticas aos vilancetes tão em voga nos fins da Idade Média); está, também nas admiráveis descrições da natureza. (...) A “sucessão das cenas como um teatro de revista”.


Gil Vicente é muito mais realista do que Camões, que nos Lusíadas colocava como heróis os reis e membros da aristocracia portuguesa ou os deuses grego-romanos. Segundo Spina: “Se Camões expressa a grandeza do homem de Quinhentos, a aventura do espaço e a superação das forças adversas da Natureza, Gil Vicente procura exprimir as misérias da vida, o homem na sua pequenez, o homem preso às realidades terrenas, o homem que precisa purificar-se para a salvação de sua alma. O que os aproxima é o sentimento cristão: no Épico, expresso pela consciência de cruzada a que se destina o seu povo na dilatação da Fé; no dramaturgo, subentendido no efeito purificador de sua arte, a ensinar a renúncia e propor o caminho que leva à salvação. (...) “Se Gil Vicente procura, pois, retratar ao vivo a sociedade coetânea, as misérias morais e políticas de então, é perfeitamente explicável que, dentro deste programa previamente traçado para o seu teatro, não se ajustava o elogio do homem renascentista, a exaltação dos valores épicos, do heroísmo embriagador dos homens de Quinhentos.”


Antônio José Saraiva divide as peças vicentinas em três categorias: alegoria, quadro (ou episódio) e narrativa.

“Os autos (que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco (mas preferencialmente devoto e com personagens alegóricas) desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos ‘mistérios’, aos ‘dramas litúrgicos’ e às ‘moralidades’), portanto, ligadas ao teatro litúrgico europeu.”

“Para se ter uma idéia da formação do auto e da sua evolução na literatura peninsular, é preciso pensar na existência simultânea de um teatro profano, embora conhecido apenas através de alusões de autores medievais e de proibições constantes nos corpos legislativos da época (...). Nelas se proíbe aos clérigos fazerem os chamados ‘jogos de escárnios’, peças de caráter burlesco e destinadas às camadas populares. (...) Algumas delas assumiam a forma de paródias religiosas e chegavam mesmo a ser representadas nos claustros das igrejas — consoante se infere das próprias proibições alfonsinas.”

“A infiltração gradual de elementos profanos no teatro litúrgico, que propiciou a transladação destas representações da igreja para a praça pública nos fins da Idade Média, veio ampliar a primitiva feição religiosa do auto, contaminando-a de elementos satíricos — bem visíveis ainda em várias peças do teatro devoto de Gil Vicente.”

 “Os primitivos autos destinavam-se a celebrar as festividades religiosas do Advento, da Natividade, dos Reis, da Páscoa, do Corpus e das comemorações hagiográficas, em suma, do Nascimento e da Morte do Senhor. (...) Nestas representações entrelaçavam-se cenas pastoris e alegóricas com números de canto, diálogo e baile. (...) Mas é com Gil Vicente que o auto se define e se caracteriza como forma dramática, atingindo com ele o seu esplendor no século XVI.”

“A música e a dança entrelaçavam-se frequentemente nos autos como ingredientes de alta importância, embora a declamação constituísse a parte predominante. A música ou era vocal a solo e em conjunto, ordinariamente acompanhada por instrumentos, ou era puramente instrumental. (...)Gil Vicente trazia para o campo literário todo o caudal lírico da tradição folclórica portuguesa, nos cantares das serranas, nas canções de romaria e nos saborosos vilancetes e romances, inclusive em sua primitiva estrutura paralelística.” Uso da “medida velha”, o verso redondilho maior ou menor, de sete ou cinco sílabas.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A POESIA TROVADORESCA (CONTINUAÇÃO)



Segismundo Spina, no livro Presença da literatura portuguesa -- A era medieval escreve:

“Pelo assunto, poderemos classificar os cantares d’amigo em cantares d’amigo exclusivamente amorosos, em que a donzela nos narra a separação do amigo e as circunstâncias que envolvem a partida; cantares de romaria, em que a donzela convida companheiras, a irmã ou mesmo a mãe para peregrinação a santuários, importante ponto de referência para encontros e bailados; pastorelas (que alguns preferem incluir entre os cantares d’amor porque fala primeiro o namorado, e é assim que preceitua a Arte de Trovar), nas quais o ambiente é rústico, não palaciano como no cantar d’amor (...); bailadas, que versam o tema da dança e os incidentes sentimentais que ela suscita; marinhas ou barcarolas, cujo temário é extraído da vida marítima. (...) Criações nacionais, sem correspondentes em outras literaturas, as barcarolas exprimem com todo o encanto a experiência de um povo criado à beira-mar.”

“O tema constante desses cantares — e por isso mesmo monótono — é a coita, a paixão vivida pelo homem que está a serviço de uma dama. O trovador se compraz, então, em viver de um amor insatisfeito, ocasionado pela incorrespondência da mulher, e em analisar nos seus pormenores de causa e efeito o seu drama passional. A mulher torna-se, assim, a dame sans merci, a dona impiedosa, obstinadamente inacessível às solicitações do trovador amante.”

“Se os cantares d’amigo se caracterizam por um doce realismo, os cantares d’amor aparecem dominados por um halo de idealismo, em que a mulher muitas vezes atinge a abstração.”

“Esta poesia de Entre-Douro-e-Minho, que aparece compilada no Cancioneiro da Ajuda, no da Vaticana e no de Colloci-Brancuti (hoje Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa), não se reduz à poesia lírica exclusivamente: outra modalidade poética, que percorre estes cancioneiros, é a que traz o nome de cantigas d’escárnio e maldizer, de intenção satírica, cuja denominação se explica pelo fato de o trovador invocar ou não o nome da pessoa escarnecida.”

 “Estas cantigas apresentam, do ponto de vista sociológico, não estético, um interesse maior que o das outras formas da poesia lírica, em virtude do seu conteúdo informativo — histórico e social. Dado o caráter escatológico da maioria destas composições, durante muito tempo a crítica não voltou os olhos para a interpretação dessa outra face do gênio poético galego-português.”

Citações do artigo A literatura medieval. A poesia, de Esther de Lemos (Gulbenkian):

“A primitiva poesia em galego-português não pertence exclusivamente à nossa literatura nacional, não é ainda estritamente ‘literatura portuguesa’. (...) E assim acontece por exemplo que uma corte como a de Castela e Leão, onde se falava no século XIII a modalidade arcaica do castelhano e se utilizava essa língua para escrever prosa, adotou como língua do lirismo o galego-português e cultivou o gênero de poesia a que chamamos galego-portuguesa. De modo que as composições incluídas nas coleções da poesia portuguesa arcaica não pertencem exclusivamente a poetas portugueses ou galegos, mas também a poetas castelhanos,  leoneses e de outros pontos da Península.”

 “Na Galiza, cedo liberta do domínio árabe, aberta às influências de além-Pirineus através da grande rota das peregrinações a Santiago de Compostela (o santuário de maior nomeada na Europa Ocidental durante a Idade Média), parece ter florescido já muito antes da fundação da nacionalidade portuguesa, uma poesia de inspiração tradicional, folclórica, cultivada sobretudo pelos jograis —  poetas e músicos profissionais, muitos deles antigos clérigos, que se exibiam em feiras e romarias  e eram também recebidos e acarinhados nas cortes dos reis e grandes senhores.”

(...)

 “Os jograis galegos teriam tido assim o mérito de recolher, aproveitar, difundir e por fim fixar para a forma escrita essa tradição oral primitiva, vinda do fundo do tempo e da eterna alma feminina.”

 “A essa poesia jogralesca de fundo tradicional veio, entretanto, sobrepor-se uma influência estrangeira, bem patente e documentada na poesia das coleções que chegaram até nós: a influência do lirismo provençal.”

 “Na cansó (canção) de amor provençal, o trovador celebra os raros dons morais e físicos da senhora a quem diz amar e servir com total devoção; proclama a grandeza desse amor e exulta por poder cantar tão nobre sentimento e tão excelsa senhora. Fá-lo usando uma linguagem polida e escolhida, e uma métrica de grande variedade e riqueza.”

Essa arte poética baseava-se no código do amor cortês (amor à moda da corte), “que implica uma série de regras rígidas, um formulário do serviço do perfeito namorado. O segredo quanto à identidade da dama celebrada — necessário até porque o trovador provençal cantava geralmente um amor proibido, pois dirigia sempre as suas homenagens a senhoras casadas; a mesura, qualidade complexa dos que amam ou merecem o amor — feita de boas maneiras, prudência, moderação; a renúncia a todo o prazer que seja para a dama causa de desgosto; a fidelidade e constância sem limites; o sentimento de que amar é o supremo bem e de que nada se deve esperar em troca do amor puro: eis outros tantos tópicos desse amor cortês que informava o lirismo vindo da Provença.”

“O Cancioneiro da Ajuda, assim chamado por se encontrar atualmente na biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa, manuscrito em pergaminho, com letra dos finais do século XIII ou começos do XIV e formosas iluminuras que representam figuras de músicos, jograis e soldadeiras (isto é, bailarinas). A seguir às poesias encontram-se espaços em branco, destinados à notação da música, que não chegou a ser copiada, pois o manuscrito ficou inacabado (...). O Cancioneiro da Ajuda reúne composições dos autores mais antigos da poesia galego-portuguesa; essas composições pertencem exclusivamente ao gênero cantiga de amor.”

“Os outros dois cancioneiros são o Cancioneiro da Vaticana, que pertence à biblioteca do Palácio Pontifício de Roma, ou Biblioteca Vaticana, e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, que pode ver-se hoje na Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa; um e outro são cópias tardias de um ou mais manuscritos já perdidos, cópias essas feitas em Itália no início do século XVI. Já não comportam notação musical e apresentam bastantes dificuldades de leituras.”

“Além desses três cancioneiros, cumpre mencionar outros que transmitem o Livro das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, rei de Castela e Leão. Trata-se de uma coletânea de poemas para cantar, dedicados à Virgem e inclui a notação musical de cada composição.”

 “Os cancioneiros galego-portugueses comportam, como se disse, três gêneros diversos de composições: a) cantigas de amor; b) cantigas de amigo; c) cantigas de escárnio e mal-dizer (poesia satírica).”

 Cantigas de amor

“Na cantiga de amor, o eu que se exprime é masculino: o poeta que como tal se apresenta frequentemente, fala da amada ou do amor que lhe dedica.”
  
“Na cantiga de amigo, o eu que se exprime é feminino: uma rapariga que nunca se apresenta como poetisa (e só algumas vezes canta cantigas alheias) fala do seu amigo (na linguagem dos trovadores esta palavra significa namorado) e do amor que lhe inspira ou sente por ele.”

“Na cansó de amor provençal, o sentimento dominante é o júbilo de amor, uma espécie de êxtase da alma e dos sentidos que transporta o poeta ao cantar a sua amada, mesmo quando tudo é adverso à realização do amor. (...) Na cantiga de amor galego-portuguesa essa luminosidade radical apagou-se. A palavra-chave já não é júbilo – é coita, a pena de amor, a mágoa incurável incessantemente repetida e lamentada.”

 “E embora o poeta continue a protestar, à moda provençal, que sofrer por tal senhora é o maior dos bens, escapam-lhe a cada passo amargas lamentações, e a imagem da morte é a que mais frequentemente lhe acode para exprimir o inefável tormento de amar sem recompensa e sem força para resistir ao fascínio. (...) Não raro, até esquecendo toda a mesura imposta pela disciplina da escola cortês, o trovador increpa Deus que permite tal sofrimento ou, suprema heresia, além de censurar amargamente a amada, sonha impossíveis vinganças contra aquela que o tortura e despreza.”

 “No reduzido número de situações e sentimentos da cantiga de amor galego-portuguesa avultam alguns que são absolutamente tópicos: a morte de amor, a que já aludimos; a mágoa da ausência ou da privação da vista da senhora; a timidez, quase pavor, que impede o poeta de revelar  à amada os seus sentimentos, e ainda o motivo insistentemente retomado dos olhos, instrumentos da paixão.
  
“A cantiga de amor galego-portuguesa caracteriza-se ainda (...) pelo caráter abstrato e descolorido da expressão que utiliza: nem apontamentos de paisagem, nem o recurso a imagens extraídas do mundo dos objetos materiais: tudo se passa na cabeça e no coração do amante. De modo que o vocabulário pouco variado tende sempre para a generalização, para a abstração da senhora tão louvada, não vislumbramos o mínimo traço que a individualize. É invariavelmente classificada com vocábulos ou expressões vagos como fermosa, de bon parecer, de bon semelhar, mas nenhuma feição do seu corpo, a não ser os olhos, cujo papel é mais simbólico do que real, se adivinha sequer.”

 “Quanto ao retrato psicológico, é um tipo único que reaparece na poesia de numerosos trovadores (...): a senhora tem bon sen (bom senso, bom pensar), sabe falar e rir melhor do que nenhuma outra, é leal, afável, de boas maneiras, de excelente reputação – em suma, comprida de todo o ben, ou seja, perfeita em tudo.”

 “O que o trovador faz, mais do que cantar a amada, é chorar a privação dela a que está condenado, dirigindo-lhe muitas vezes uma prece ferverosa; quase poderíamos dizer que, na cantiga de amor galego-portuguesa, a senhora é a grande ausente, de quem ignoramos quase tudo, e que só interessa como instrumento de tortura ou de impossível felicidade.” Pouco se sabe, também, das dimensões de tempo e espaço em que ocorre o drama desses amores.

 “Desta ausência de imagens, desta repetição de motivos, do predomínio de um vocabulário abstrato, resulta sem dúvida, à primeira leitura, uma certa impressão de secura, de descolorido e de pobreza.” Não se trataria, porém, de “indigência, mas de voluntário despojamento, na busca de uma expressão depuradamente intelectual”.

 “Quanto à técnica de versificação, a cantiga de amor galego-portuguesa fica sem dúvida muito atrás da riqueza e exuberância das formas provençais, às vezes rebuscadamente intrincadas.”

 “A forma mais culta, influenciada pela lição dos trovadores, é a da composição chamada cantiga de mestria: trata-se de um poema formado por várias estrofes, em geral três ou mais, sem refrão, e rematada com uma finda, isto é, um verso ou vários versos isolados em que se corrobora o sentido de toda a composição.”

Cantigas de amigo

A cantiga de amigo distingue-se da cantiga de amor por apresentar diferenças na “forma de encarar o amor, na linguagem utilizada, nos esquemas estróficos e rimáticos”.

“Este lirismo realiza-se em geral segundo um esquema estrófico e rimático muito peculiar, em que impera o princípio designado por paralelismo. Na poesia paralelística, a estrofe primitiva – um dístico, ou grupo de dois versos – repete-se na estrofe seguinte, com alteração apenas da palavra ou palavras finais. (...) O uso do refrão – um verso, ou versos, que se acrescenta ao dístico inicial e depois se repete, sempre igual, ao longo de todo o poema – completa quase invariavelmente o esquema destas cantigas. (...) Mas este simples esquema paralelístico complica-se em grande número de cantigas pela introdução do processo chamado na língua dos trovadores leixa-pren (isto é, deixa-toma ou larga-pega) que consiste, aproximadamente, à maneira das desgarradas populares ainda em uso, em começar cada estrofe repetindo o último verso de uma estrofe anterior

 “Os temas, extremamente simples, condizem com a pureza da forma: são pouco mais do que suspiros de mágoa ou exclamações de alegria, convites à dança e ao canto, interrogações ansiosas sobre uma ausência, protestos de amor até a morte, invocações da donzela às flores, às ondas, às aves e aos cervos do monte, a outras donzelas ou à mãe – numa efusão lírica em que o eu parece derramar-se e fundir-se nas coisas.”

 “Dentro do gênero cantiga de amigo não existe, é preciso notar, a homogeneidade acentuada que notamos dentro do gênero cantiga de amor.” Muitas dessas composições “apresentam fatura mais complexa, fogem geralmente à simplicidade do paralelismo anafórico das bailas; tratam o caso de amor com sutileza e argúcia, às vezes com dramatismo expressivo, outras, com um toque de ironia travessa.”

“Menos ricas em alusões a aspectos da natureza, estas cantigas fornecem alguns ligeiros apontamentos da vida quotidiana – expedições militares, treinos de armas, torneios poéticos, festas de boda, romarias, a ansiedade das longas ausências, as oportunidades de namoro, as relações familiares.”

Poesia satírica. Cantigas de escárnio e mal-dizer.

“A diferença entre esses dois subgêneros satíricos é que, na cantiga de maldizer, o trovador critica diretamente algum aspecto risível da realidade, sem esconder nem disfarçar o alvo das suas críticas, ao passo que na cantiga de escárnio procura fazê-lo ‘por palavras encobertas, que hajam dois entendimentos’, para usarmos uma frase da arte de trovar (...). Isto é, o escárnio comportaria, como elemento distintivo, um equívoco, um duplo sentido, que proporcionaria aos leitores o prazer de um jogo de interpretação.”

“A nossa poesia satírica só raramente se ergue às alturas de uma crítica dirigida a aspectos graves da vida em geral. Habitualmente, tende para a caricatura dos vícios e ridículos individuais, desde a beberronia, a soltura de costumes ou a avareza de uns, à disformidade física, ao mau gosto do traje ou à fastidiosa tagarelice de outros. Crítica anedótica, circunstancial, das fraquezas, misérias e vergonhas individuais, tem, frequentemente, um caráter grosseiro e obsceno.”

“A lamentação em termos genéricos sobre a decadência dos valores morais – verdade, lealdade, mesura – assume às vezes um tom grave; outras, mais travesso e ligeiro”, sendo que às vezes o alvo dessas críticas é o clero.

“Em todo este ciclo de cantigas, como aliás em outras sátiras do cancioneiro, se denuncia amargamente a quebra da grande virtude que fora o suporte moral e afetivo do mundo feudal: a virtude da lealdade, da fidelidade ao juramento feito.”

“Também a covardia dos homens de armas foi objeto de sátiras extremamente eficazes, produzidas sobretudo por Afonso X.”
As cantigas satíricas referem-se ainda à “miséria ou escassez da pequena nobreza empobrecida e pretensiosa, a ânsia de promoção dos burgueses e vilãos que desejam a todo custo enobrecer-se.”

“A poesia burlesca dos cancioneiros justamente pela pequenez cotidiana dos seus motivos, pela atenção aos aspectos mais humildes da vida – as refeições, o traje, os transportes, o dinheiro, as diversas ocupações domésticas etc. – constitui um precioso repertório de notícias sobre a vida quotidiana e a pequena história dos reinos cristãos da Península durante o século XIII.”

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A POESIA TROVADORESCA (SÉCULOS XII A XV)



A literatura medieval portuguesa, no período entre 1198 e 1434, conheceu dois grandes movimentos poéticos:

a) a floração trovadoresca (séculos XII-XIV), de D. Sancho I até a morte de D. Dinis;

b) a floração dos poetas palacianos (séculos XV-XVI, 1450-1516), compilada no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516).

Nesse período histórico, a literatura portuguesa registra também as crônicas históricas de Fernão Lopes, o teatro de Gil Vicente, a prosa doutrinal de caráter religioso, a prosa didática de corte e as novelas de cavalaria (Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal, por exemplo).

Segismundo Spina, no livro Presença da Literatura Portuguesa, vol. I, A Era Medieval afirma:

“Como a geração de Avis inaugura na primeira metade do século XV uma nova mentalidade política e literária, a data da nomeação de Fernão Lopes para o cargo de cronista oficial do Reino (1434) torna-se um marco de certa importância na vida mental do país, com significado não apenas político (início da consolidação política do Reino após a vitória de Aljubarrota sobre os castelhanos), como também linguístico e literário, pois no início do século a língua portuguesa adquire características nacionais e a prosa literária inicia a sua fixação com as crônicas de Fernão Lopes. (...) Daí dividirmos a produção literária medieval em duas épocas: 1) em que o instrumento linguístico é o galego-português, decorre de fins do século XII (1198, data provável da mais antiga poesia lírica) até 1434; e a 2) a partir desta data até Sá de Miranda, em 1527, quando chega da Itália com vasta bagagem de novidades estéticas aprendidas com os autores renascentistas italianos e impregnado, acima de tudo, da idéia de Beleza Absoluta”.

Data de 1198 a mais antiga composição literária portuguesa, uma cantiga de amor escrita pelo trovador Paio Soares de Taveirós, dirigida a Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha), amante de D. Sancho I:

Cantiga da Ribeirinha:

No mundo nom me sei parelha,

 mentre me for' como me vai,

ca ja moiro por vos - e ai

mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia!

Mao dia que me levantei, que vos enton nom vi fea! "


"E, mia senhor, des aquel di' , ai! 

me foi a mim muin mal,

e vós, filha de don Paai

Moniz, e ben vos semelha

d'aver eu por vós guarvaia,

pois eu, mia senhor, d'alfaia

nunca de vós ouve nem ei

valia d'ua correa".


(“No mundo ninguém se assemelha a mim / enquanto a minha vida continuar como vai / porque morro por ti e ai / minha senhora de pele alva e faces rosadas, / quereis que eu vos descreva (retrate) / quanto eu vos vi sem manto (saia: roupa íntima) / Maldito dia! me levantei / que não vos vi feia (ou seja, viu a mais bela).

 E, minha senhora, desde aquele dia, ai / tudo me foi muito mal / e vós, filha de don Pai / Moniz, e bem vos parece / de ter eu por vós guarvaia (guarvaia: roupas luxuosas) / pois eu, minha senhora, como mimo (ou prova de amor) de vós nunca recebi / algo, mesmo que sem valor.”)

A floração literária portuguesa, diz Spina, deve ser compreendida “dentro de uma moldura não só peninsular, mas principalmente latino-medieval. As forças poéticas do hemisfério românico estão iniciando a sua individualidade literária, mas evidenciam laços de comunidade: o movimento lírico do sul da França — a chamada poesia provençal, ou melhor, occitânica — a floração lírica do Minnesang na Alemanha, a dos trovadores do norte da Itália, bem como a própria vegetação poética dos árabes na Andaluzia.”

Porém, continua Spina, “a poesia de Entre-Douro-e-Minho (...) não nasceu sob esta inspiração, pois as virtudes poéticas e musicais destas populações do noroeste da Península Ibérica são de uma ancianidade anterior a todos esses movimentos poéticos da época do feudalismo” (...) A penetração e o conhecimento da poesia provençal nestas plagas só têm o condão de disciplinar a vocação poética dos galego-portugueses, transmitindo-lhes a sugestão de um mecenatismo oficial, um paradigma de vida galante propício para o florescimento da poesia e um conjunto de normas técnicas para a elaboração poética".

Santiago de Compostela, grande centro de peregrinos que ali acorrem para visitar o túmulo do Apóstolo, é o foco de elaboração literária da poesia trovadoresca, que daí irradia para as cortes de Castela e Portugal.

Prossegue Spina:

“Do ponto de vista estético, dissemos que a penetração da poesia cortês da França meridional nas terras galego-portuguesas desde a juventude de D. Sancho I vem estimular e aperfeiçoar a primitiva criação poética representada pelos chamados cantares d’amigo, cujo tipo rudimentar, folclórico, é de estrutura coral, com versos parelhados na forma e no conteúdo, seguidos de refrão.”

 “Esta poesia, aliada à dança, e cujo temário é representado pelas próprias sugestões circunstanciais da natureza, denomina-se paralelística.”

 “Na ordem crescente dos valores estéticos seguem-se as cantigas d’amigo já elaboradas, com pretensões artísticas, em que o tema adquire unidade narrativa e os expedientes formais da poesia primitiva popular vão sendo progressivamente abandonados.”

 “Tal aperfeiçoamento se deve ao influxo da canção d’amor, culta e de ambiente aristocrático, que por sua vez chega a receber influências da própria poesia tradicional.”

Enquanto as cantigas de amigo expressam a vida campesina e urbana, as cantigas de amor expressam o ambiente refinado da corte. 

As cantigas de amigo, embora narradas por um eu lírico feminino, foram compostas por poetas do sexo masculino.