sábado, 10 de maio de 2014

CESÁRIO VERDE E O REALISMO


Cesário Verde nasceu em 1855, em Lisboa. O pai era comerciante e também se dedicou à agricultura, na granja de Linda-a-Pastora (que inspira o poema Nós). O menino começa a trabalhar como empregado do pai numa loja de ferragens. Ao longo da vida, irá se dedicar ao trabalho no comércio, inclusive na área de exportações. Aos 18 anos, matricula-se no curso superior em Letras, que não conclui. Conhece Silva Pinto, que torna-se seu amigo e publicaria, postumamente, o Livro de Cesário Verde. Em 1873, com 19 anos de idade, publica os primeiros poemas em jornais da época. Causa polêmica o seu poema Esplêndida. Apaixona-se pela atriz Tomásia Veloso, que o despreza; por causa dela, envolve-se numa briga com o amante da atriz, Oliveira Grosso, que espanca o poeta. Teófilo Braga publica uma antologia de novos autores portugueses, em 1877, sem fazer nenhuma menção a Cesário Verde. Em 1880, publica, aos 25 anos de idade, o Sentimento de um Ocidental, poema comemorativo do bicentenário de Camões que é ignorado pela crítica. Em 1884, contrai tuberculose, falecendo dois anos depois, aos 31 anos de idade. A primeira edição do Livro de Cesário Verde é publicada em 1887, com tiragem de 200 exemplares.     


Maria Aparecida Paschoalin assim comenta o contexto histórico do autor:

“Portugal, a partir de 1851, passava a viver o período da Regeneração (caracterizado pela alternância de dois partidos no poder durante 40 anos), que foi efetivamente o período do liberalismo. Desde 1820, com a Revolução Liberal, o que se presenciou foi a luta constante entre conservadores e liberais. E esses, muitas vezes, com a bandeira da revolução, revelavam paradoxalmente princípios e objetivos pouco liberalizantes. Instala-se uma monarquia constitucional, que restringe o Poder Moderador exercido pelo rei. O governo da Regeneração realizou-se após um golpe de Estado (o duque de Saldanha assume o poder apoiado pelos liberais e conservadores), reunindo as forças anti-absolutistas, o que implica o fracasso definitivo dos partidários do absolutismo miguelista (adeptos de Dom Miguel, que, apoiado pela Santa Aliança européia, representava o absolutismo). A reconciliação provisória entre liberais e conservadores, que acaba por gerar a alternância de dois partidos no poder, cria a rotatividade entre progressistas e conservadores, imitando-se o modelo político e econômico que era a Inglaterra: é a experiência parlamentar. Utilizando-se de empréstimos no exterior, Portugal entra na fase de construção de milhares de quilômetros de estradas de ferro, dezenas de pontes, valorizando a política do transporte. A incipiente indústria nacional é relegada, o que privilegia a Inglaterra, e sua penetração imperialista se torna inevitável. O caminho de ferro passa a levar às aldeias portuguesas a produção mais barata e trazer para o centro urbano o homem rural que, com a criação de novas fábricas, vem procurar melhores condições de trabalho, ou pelo menos salários que, por piores que sejam, são recebidos regularmente. As áreas rurais se esvaziam e a população da cidade duplica. Enquanto a agricultura carece de investimento, os lucros conseguidos na indústria são na sua maioria investidos em prédios urbanos, desenvolvendo-se assim a construção civil. À medida que as contradições se acentuam — entre campo e cidade — e que na cidade mais se evidenciam as desigualdades sociais, surgem manifestações de descontentamento social. Em 1870 é fundado o Partido Socialista e em 1876 o Partido Republicano, que se a princípio têm um projeto quase comum, acabam por se diferenciar: um de tendência socialista-cooperativista e outro de tendência reformista. As cidades fechadas passam a ser centros urbanos: as atividades comercial e industrial geram um movimento vivo. Os comboios, o telégrafo e os jornais enchem a cidade de nova população, diferentes hábitos e notícias. A caleche, a carruagem e carros puxados por burros são os transportes urbanos que interrompem o isolamento das famílias. Com superpopulação, sem saneamento básico, sem habitações adequadas na cidade, a população vinda da zona rural à procura de trabalho passa a contrair cólera e tifo, ou doenças tipicamente urbanas, como a meningite, pneumonia, tuberculose etc. A mendicância agrava-se. (...) A exploração da mão-de-obra trabalhadora — principalmente menores e mulheres — é escandalosa.”


CONTEXTO LITERÁRIO:

Maria Aparecida Paschoalin escreve:

“Os escritores passam a escrever sobre a realidade. É um tempo em que o sonho de amor, individual, cede lugar ao sonho coletivo, de igualdade humana e social. Surge a literatura realista que fala do homem com suas implicações políticas, econômicas e psicológicas. Documenta-se o real concreto, o que até então nunca fora tomado como matéria literária: a miséria, os anseios humanos de libertação social. Na história da literatura portuguesa e de Portugal, ocupou lugar de realce a Geração de 70, constituída por um grupo notável de jovens intelectuais, a maioria formada na Universidade de Coimbra. Essa geração se inicia e se conscientiza como grupo em 1865, na chamada Questão Coimbrã — ou ‘do bom senso e do bom gosto’ —, que colocou jovens intelectuais, liderados por Antero de Quental, contra os valores sociais e literários representados por Castilho, autor ultra-romântico, de um sentimentalismo exagerado. O grupo se firma em 1871, em Lisboa, quando os mais ativos representantes organizam um ciclo de conferências no cassino Lisbonense. Tais conferências abrangem os aspectos modernos da literatura, história, religião, educação etc., que se convertem, é claro, em críticas e ataques à ordem social e política existente. A proibição das conferências pelo governo mostra a pouca solidez do liberalismo lusitano. Aliás, mostra também um sintoma do clima da Europa que, conservadoramente, se retrai após a Comuna de Paris, em 1871. Um dos fatos importantes é que esse grupo reagiu contra a monotonia da geração romântica do ‘mal do século’, portanto, contra a cultura pequeno-burguesa em formação, e estremeceu a cultura portuguesa ao colocar em discussão essa cultura, ou toda a história portuguesa, desde suas origens, principalmente o período das descobertas. Questiona-se o que até então não fora questionado: a gloriosa história portuguesa fora realmente gloriosa? A quem serviram os descobrimentos? Por essa razão, as Conferências Democráticas do Cassino abrangem temas que vão da arte à política. Entendiam que a literatura — aliás, a arte em geral — não deveria falsear a realidade e a época histórica.”


AVALIAÇÃO ESTÉTICA:

“Cesário Verde foi uma ponte entre o Realismo do século XIX e a moderna literatura portuguesa. Ele foi o primeiro poeta português a mostrar que na beleza poética também estão contidos o grotesco, a miséria, a prostituição, seres humanos reduzidos a animais. E que tudo isso constitui — infelizmente — a verdadeira poesia do cotidiano. São comuns em sua obra versos que descrevem sensações — visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas. O poeta é intensamente atraído pela cidade. Não a rejeita. Mas, atraído, é sensorialmente abafado por ela. (...) A quase totalidade da obra cesárica compreende poemas que são pequenas narrativas, registros de monólogos íntimos de um autor-transeunte, que caminha pelas ruas de Lisboa. Poeta sensorial e, por excelência, visual, Cesário é um artista plástico. Sua poesia é traçada com linhas e cores, como se cada poema fosse um quadro. Em cada estrofe, bloco de versos (passos) do poeta-transeunte, sobressai o uso do substantivo e da frase nominal: o verbo perde sua importância e há uma aglutinação de substantivos (...) predominantemente acompanhados por adjetivos ou locuções adjetivas. Vivenciando o fluxo e o refluxo do Romantismo, fustiga-o a princípio a reação satânica-católica de Baudelaire a esse mesmo Romantismo (cerne de todos os ismos até o final do século XIX); colhe, posteriormente — ou, diria melhor, simultaneamente — o impacto renovador do impressionismo nas artes plásticas e antevê o Expressionismo da viragem do século.” (Ricardo Daunt)

No poema O Sentimento de um Ocidental, Cesário revela um “lirismo antideclamatório” (idem). Trata-se, segundo Daunt, de “uma viagem infernal pelas ruas de Lisboa até o alvorecer, fornecendo-nos de corpo inteiro o herói camoniano em sua aventura solitária, por vezes medíocre, mas valorosa, e que sem contar com a força do destino caminha na tentativa de transcender o mundo fragmentário para atingir o ideal, o atemporal, a perfeição do qual é fabricado com as armas do imaginário”. (idem).

“Atraído (...) pelo cotidiano, afasta-se de qualquer intuito de fazer do poema um território filosófico, como Antero de Quental. Sua obra atesta a presença de um sujeito lírico que deambula pelo mundo urbano da civilização industrial capturando os variegados recortes físicos e os múltiplos estímulos sensoriais da cidade labiríntica” (idem).


                                CESÁRIO VERDE, O ANJO TORTO DE LISBOA

                                                                                                                               Claudio Daniel 

Cesário Verde (1855-1886) é contemporâneo do processo de transformação de Portugal, com o surto industrial e a expansão urbana, no final do século XIX, e sua poesia reflete essa mudança de paisagem, incorporando a temática social com o enfoque crítico do carbonário, do tribuno da plebe. Ele é o poeta dos operários, das lavadeiras, dos mendigos que tropeçam na sarjeta ante a marcha acelerada do veículo de um magistrado. No entanto, o seu engajamento, sua ética de solidariedade, nunca prescindiu do compromisso estético, numa linha paralela às concepções de Maiakovski. O poeta português antecipou a própria irreverência futurista em versos como estes: “descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados” (de Num bairro moderno) e “Eu desfaria o Sol como desfaço/ as bolas de sabão das criancinhas” (de Arrojos). Herdeiro de uma orgulhosa tradição nacional, a dos argonautas lusitanos, como Vasco da Gama, o poeta não poupou de sua língua ferina nem o próprio oceano: “Eu temo muito o mar, o mar enorme,/ Solene, enraivecido, turbulento,/ Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;/ O mar sublime, o mar que nunca dorme./ (...) Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,/ Escarro, com desdém, no grande mar!” (de Heroísmos).

A rima, na poesia de Cesário Verde, nunca é banal, rotineira, mas incisiva, contundente; ele obtém efeitos de ironia, de sensualidade, de comoção, dentro de sutis jogos metalinguísticos. Em sua oficina, o poeta obtém rimas entre nomes próprios e substantivos comuns (Marta / carta); entre palavras do idioma português e estrangeirismos (contrarie / coterie); entre termos científicos e do léxico comum (aneurisma / abisma); entre vocábulos de diferentes números de sílabas (relógio / martirológio), isso para ficarmos em poucos exemplos. O uso de adjetivos justapostos, em seus poemas, não é acessório, cosmético, mas, na maioria das vezes, cumpre uma função crítica, de caricatura, via linguagem, como em Ecos de Realismo — Manias:

O mundo é uma velha cena ensangüentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, — hoje uma ossada —,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa.

Na sujeição canina mais submissa
Levava na tremente mão nervosa
O livro com que a amante ia ouvir missa!

O pessimismo de Cesário Verde, que encontra sua força de expressão no humor negro, nos cromos metafóricos, no grau superlativo dos adjetivos, recorda o espírito e o estilo analítico-cirúrgico do brasileiro Augusto dos Anjos. A visada crítica do poeta português, porém, martelo nietzscheano para golpear todos os valores, é ditada menos pelo tédio, pelo spleen do estar no mundo que por um sentimento de asco ante a degradação social e de espírito.

Perfis do eterno feminino

Em sua poesia amorosa, porém, o bardo inconformista faz-se cantor romântico, blues singer da última flor do lácio, em versos como: “Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas/ Em que ela esconde as lágrimas singelas” e “Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,/ E faria que a noite fosse eterna” (de Responso). No mesmo poema, o autor define sua amada na melhor tradição byroniana: “É loura como as doces escocesas,/ Duma beleza ideal, quase indecisa,/ Circunda-se de luto e tristezas/ E excede a melancólica Artemisa”. E conclui, na última estrofe: “Uníssemos, nós dois, as nossas covas,/ Ó doce castelã das minhas trovas!”. Esta associação da mulher sonhada com a noite, a melancolia e a morte encontra-se em autores do primeiro Romantismo, nas heroínas pálidas de Poe, nas damas dramáticas de romances sentimentais e óperas de boulevard. A lírica de Cesário Verde, no entanto, revela outros perfis do eterno feminino: o arquétipo da mulher pura, sincera, apaixonada, que o poeta deve proteger com ternura, e sua contraparte, a imagem de Lilith-Astarté, de uma Madalena lúbrica e impenitente, que nele desperta ao mesmo tempo o sentimento erótico, o desprezo e, sobretudo, o medo. Diz o autor, em A Forca: “Ó áridas Messalinas/ não entreis no santuário,/ transformareis em ruínas/ o meu imenso sacrário!/ Oh! A deusa das doçuras,/ a mulher! eu a contemplo!/ Vós tendes almas impuras,/ não me profaneis o templo!”. Curiosamente, na temática erótica, ressurgem, na poesia do rapsodo anticlerical, símbolos e referências do catolicismo, a condenar aos círculos infernais a mulher-só-carne. Em outro poema, Lúbrica, o poeta entrega os pontos, e deixa-se enfeitiçar pelas investidas da amiga luxuriosa:

Mandaste-me dizer
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cena de rapazes.

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

(...)

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!

O poeta dissidente

O poeta moderno, despido de aura, encharcado pela lama e entregue às vicissitudes da sociedade de consumo é um tema que já aparece em Baudelaire, inspirando a reflexão crítica de Walther Benjamin. Para Cesário Verde, na civilização burguesa, o artista é o dissidente rebelionário, rejeitado pelo mundo que rejeita, sendo natural a solidariedade por todos os oprimidos, pelos humilhados, que, acreditava-se, um dia fariam a revolução. No poema Contrariedades, ele nos diz:

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Neste poema, o autor compara a situação dos excluídos, dos miseráveis, à do poeta, também ele um marginal, um anjo torto,gauche na vida. Aqui, ele utiliza técnicas de corte de cena e de montagem que recordam a linguagem do cinema e das histórias em quadrinhos. A narrativa é dinâmica, com planos sucessivos de imagens, e a fala do poeta, direta, enfática, coloquial, reforça o efeito comunicativo do poema. Mais adiante, o autor diz:

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos.

E a tísica? Fechada e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Não se pode esquecer que o poeta é contemporâneo do realismo e do naturalismo, correntes estéticas que buscavam conciliar o humanismo e a defesa de valores democráticos a uma visão mecanicista, cientificista de mundo, cuja expressão teórica foi Taine. E Cesário Verde, como um pintor naturalista, nos mostra “cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha” e “condados mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor! Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações!” (de Nós).

O poema que melhor expressa o pacto de Cesário Verde em retratar a verdade, sem maquilagem, é O Sentimento dum Ocidental A peça, dividida em quatro partes (I - “Ave-Maria”; II - “Noite Fechada”; III - “Ao Gás”; IV - “Horas Mortas”) foi publicada pela primeira vez em 1880, numa edição comemorativa do Jornal de Viagens, que homenageava Camões. Este é o poema de ambiente mais urbano, mais moderno, do poeta; por ele trafegam dentistas e carpinteiros, operários e floristas, carros de aluguel e navios mercantes, numa paisagem de edifícios e vias-férreas, hospitais, cadeias e praças. É uma elegia às ruas de Lisboa, essa Londres em caricatura, emulsão de capitalismo tardio e cristandade, que o poeta retratou com as verdes tintas do sarcasmo. Logo na primeira parte do poema, o autor nos dá um exemplo de sua fanopéia concisa, fragmentária: “O céu parece baixo e de neblina/ O gás extravasado enjoa-me, perturba;/ E os edifícios, com as chaminés, e a turba/ Toldam-se duma cor monótona e londrina”.

O poema recorda, por vezes, os cenários dos romances de Zola e das crônicas de jornal; mas a síntese verbal, a linguagem dinâmica, substantiva, as metáforas ferinas, os efeitos sonoros e construções insólitas (“E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,/ Amareladamente...”) revelam o artesão apurado, mestre em sua arte, feiticeiro da orquestração das palavras. O Sentimento dum Ocidental é o documento doloroso de uma época da cultura européia, a do desenvolvimento fabril, com o inevitável custo social em miséria e sofrimento; este é o cântico noturno da gênese do século XX.

Cesário Verde faleceu em 1886, em Lisboa, aos 31 anos, vítima de tuberculose. Seus poemas, reunidos postumamente, foram publicados por seu amigo Silva Pinto sob o título de O Livro de Cesário Verde. Essa edição, no entanto, sofreu a ação de rapinagem do editor-censor, que excluiu muitas peças do volume, considerando-as “imorais”. Em edições seguintes, entre 1901 e 1926, os poemas excluídos foram sendo descobertos e publicados, até a versão definitiva, de Joel Serra, que conta 41 poemas.

(Artigo que publiquei, em 1999, no Suplemento Literário de Minas Gerais)


ALMEIDA GARRETT E O ROMANTISMO



João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, poeta, romancista e dramaturgo português, nasceu no Porto a 4 de fevereiro de 1799. Viveu a adolescência nos Açores, durante a ocupação francesa em Portugal. Em 1816 viajou para Coimbra, onde se matriculou no curso de Direito. Em 1821 publicou O retrato de Vénus, trabalho que lhe rendeu processo judicial, sob a acusação de ser materialista, ateu e imoral. É também neste ano que ele passa a assinar suas obras como Almeida Garrett. Em 1820 participa da revolução liberal, partindo para o exílio na Inglaterra em 1823, após a Vilafrancada. Antes casou-se com Luísa Midosi, que tinha apenas 14 anos. Foi na Inglaterra que tomou contacto com o movimento romântico, descobrindo Shakespeare, Walter Scott e outros autores, e visitou castelos feudais, ruínas de igrejas e abadias góticas, vivências que se refletiriam na sua obra posterior. Em 1824, partiu para a França e nessa viagem escreveu o conhecido poema Camões (1825), que inaugurou o romantismo em Portugal, e Dona Branca (1826). No ano de 1826 voltou para Portugal juntamente com os últimos exilados, dedicando-se ao jornalismo, fundando e dirigindo o jornal diário O Português (1826-1827) e o semanário O Cronista (1827). Exilou-se novamente em 1828, com o regresso do rei absolutista D. Miguel. Ainda no ano de 1828 perdeu a sua filha recém-nascida. Novamente na Inglaterra, publica Adozinda (1828). Tomou parte no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto em 1832 e 1833, ao lado das forças comandadas por D. Pedro IV, que venceram os miguelistas. A vitória do Liberalismo permitiu-lhe instalar-se novamente em Portugal, após curta estadia em Bruxelas como cônsul-geral e encarregado de negócios, onde leu Schiller, Goethe e Herder. Em Portugal exerceu cargos políticos, distinguindo-se nos anos 30 e 40 como um dos maiores oradores nacionais. Foram de sua iniciativa a criação do Conservatório de Arte Dramática, da Inspecção-Geral dos Teatros, do Panteão Nacional e do Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Mais do que construir um teatro, Garrett procurou sobretudo renovar a produção dramática nacional segundo os cânones já vigentes no estrangeiro. Almeida Garrett afastou-se da vida política em 1852. Contudo, em 1850 subscreveu, com mais de 50 personalidades, um protesto contra a proposta sobre a liberdade de imprensa, mais conhecida por “lei das rolhas”. Faleceuem 1854, vítima de cancro, em Lisboa, na sua casa situada na acual Rua Saraiva de Carvalho, em Campo de Ourique.
  
A poesia de Almeida Garrett, especialmente as duas coletâneas publicadas na última fase da sua vida (Flores sem fruto, de 1844, e Folhas caídas, de 1853) introduziram uma espontaneidade e uma simplicidade praticamente desconhecidas na poesia portuguesa anterior.  A liberdade da metrificação, o vocabulário corrente, o ritmo e a pontuação carregados de subjectividade são as principais marcas destas obras. (Fonte: Wikipédia)

Conforme Antônio Soares Amora:

“Almeida Garret foi um homem típico do Portugal da primeira metade do século 19, ou, mais explicitamente, do Portugal da revolução liberal e romântica. (...) Desde 1822, quando se lançou como escritor de grande público, com uma obra de escândalo, O retrato de Vênus, até morrer, com 55 anos – sempre impôs, na vida política, social e intelectual portuguesa, a sua presença atuante, influente e quase sempre dominante”. Após sua morte, houve “o culto da sua personalidade e da sua obra, culto que produziu uma linhagem de garrettistas”. Garrett “iniciara a reforma romântica da literatura de língua portuguesa. (...) Da ampla e poligráfica obra de Garrett, já foram consagrados como pontos mais altos o poema Camões, publicado em Paris, em 1825; o Romanceiro, começado a editar em 1828, em Londres; o drama Frei Luís de Sousa, representado e publicado em 1843, em Lisboa; o livro, de variada matéria, Viagens na Minha Terra, publicado em volume em 1846, e finalmente as Folhas Caídas, poemas lírico-amorosos, saídos em 1853 (...). O amor da Pátria, a paixão pela sua grandeza passada, a esperança da reconquista dessa grandeza, o sofrimento ante suas desditas, a saudade dela em acerbo exílio, a inconformação do mais puro e intenso sentimento patriótico ante um governo e uma classe dominante impatrióticos – eram sentimentos que Garrett, nos seus vinte e cinco anos, via em Camões; e pôde dar a esses sentimentos veemente expressão, porque eram também os sentimentos que o dominavam, bem como a todos os seus contemporâneos, perseguidos e deportados, de Portugal e de outros países,  da Europa e da América, pela luta contra o absolutismo e o despotismo e pela defesa do liberalismo. (...). No Romanceiro, resgatou o passado cavalheiresco, místico, marítimo e sentimental, naquilo que a raça portuguesa possuía de mais profundo e permanente em matéria de sentimento religioso, heróico e amoroso. O Romanceiro despertou, no Portugal romântico, o gosto das velhas tradições nacionais e da poesia popular”. Já no drama Frei Luís de Sousa, encontramos elementos como a “simplicidade do enredo, a concentração dos efeitos dramáticos, a economia e propriedade dos recursos expressivos, a verossimilhança e força dos caracteres e o achado de uma essência trágica, isto é, de uma situação ‘catastrófica’ e portanto sem solução (...), tratada com perfeição”.


RESUMO GERAL DA PEÇA FREI LUÍS DE SOUSA

ATO I

O drama histórico Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, é ambientado na cidade de Almada (próxima à Lisboa) no século XVII, após a batalha de Alcácer-Quibir, em que morreu D. Sebastião, e durante a dominação espanhola sobre Portugal. Logo no texto inicial do Ato I, que descreve o luxuoso cenário, há referência ao retrato de D. Manuel de Sousa, como cavaleiro de Malta, vestido de negro, com uma cruz branca no peito.

Madalena faz a fala inicial citando versos de Camões sobre o “engano d’alma, ledo e cego, / Que a fortuna não deixa durar muito”, que já antevê o trágico final da peça. Aproxima-se Telmo, um velho escudeiro que servira ao primeiro marido de Madalena, D. João de Portugal, e que, fiel ao seu senhor, não aprovara o segundo casamento desta senhora. Os dois iniciam um diálogo, e Madalena pede ao escudeiro que, quando conversar com sua filha Maria, evite alimentar na moça a expectativa pelo retorno de D. Sebastião. Madalena preocupa-se com a fantasia da filha, ao mesmo tempo em que teme não o regresso do rei, mas o de seu primeiro marido, que desaparecera na mesma batalha, há 21 anos. O retorno de D. João de Portugal deixaria Madalena na situação de mulher adúltera (seu próprio nome, de origem bíblica, não foi escolhido ao acaso), anularia seu segundo casamento, e a filha Maria seria coberta de vergonha.

Ao mesmo tempo, Madalena expressa uma crítica ao sebastianismo, que acompanhou a vida portuguesa ao longo de séculos: “... a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade”. Madalena vê no sebastianismo da filha um sinal de mau agouro, um presságio “de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família”.
Madalena expressa ainda a preocupação pela demora do marido, Manuel de Sousa, de retornar de Lisboa, que na época enfrentava uma peste.

Na cena III vem Maria, cantando e sonhando com “a ilha encoberta onde está el-rei D. Sebastião, que não morreu e que há de vir um dia de névoa”. Ela é recriminada então pela mãe, para quem “o povo, coitado, imagina essas quimeras para se consolar na desgraça”. Ela censura a filha por ler demais e “estar sempre a imaginar nessas coisas que são tão pouco para a tua idade”. Numa nota de rodapé, Garrett refere-se às antigas cantigas populares portuguesas, que ele recuperou em seu Romanceiro.

Na cena V, frei Jorge, irmão de Manuel, traz a notícia de que quatro governadores de Lisboa viriam a Almada e que requisitaram a casa de Madalena para se hospedarem. A família teria de se mudar, para que ali se instalassem as autoridades vassaladas do rei da Espanha. Maria revolta-se: “Fechamos-lhes as portas... Metemos a nossa gente dentro: o terço de meu pai tem mais de seiscentos homens, e defendemo-nos. Pois não é uma tirania?” O episódio aponta a dimensão política, nacionalista e patriótica, da peça.

D. Manuel de Sousa aparece em cena, confirma o aviso dado por frei Jorge e diz que “sairemos esta noite mesmo”. Critica os governadores de Lisboa, acusando-os de “oprimir os seus naturais em nome de um rei estrangeiro”. Maria incentiva a revolta do pai, dizendo: “mostrai-lhes quem sois e o que vale um português dos verdadeiros”.

Na cena VIII, D. Manuel glosa a filha, dizendo: “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal”. Ele planeja incendiar a própria casa, para não abrigar os governadores de Lisboa, o que é consumado no final do primeiro ato.

Antes disso, anuncia a Madalena que eles ficarão instalados na casa do primeiro marido dela, D. João de Portugal, o que aterroriza a mulher, que sente maus presságios: “Bem sei que é loucura; mas a idéia de tornar a morar ali, de viver ali contigo e com Maria, não posso com ela. Sei decerto que vou ser infeliz, que vou morrer naquela casa funesta”. O marido faz pouco caso dos temores da mulher, e ordena que todos se preparem para abandonar a casa naquela mesma noite, enquanto ele prepara uma “lição aos nossos tiranos”. Toma então duas tochas e começa a incendiar a casa; as chamas queimam o retrato de D. Manuel, para a tristeza de Madalena, que sente novo presságio.

       
ATO II

O segundo ato da peça é ambientado no antigo palácio do primeiro marido de Madalena, D. João de Portugal. Num salão antigo, vêem-se retratos de cavaleiros, monges, de el-rei D. Sebastião e do falecido dono do palácio. Maria diz a Telmo que a perda do retrato de seu pai, consumido pelas chamas, é visto pela mãe como “prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada”. Maria nota o retrato de D. João de Portugal e pergunta a Telmo quem era aquele cavaleiro. O aio hesita, dizendo tratar-se de um membro da Casa de Vimioso. Maria percebe a mentira, e observa que a sua mãe ficou intrigada com esse retrato, para o qual repetia a frase “o outro, o outro...”. Conforme ela notara, ambos os retratos não saíam da cabeça de sua mãe, num conflito emocional e psicológico representado pela comparação dos dois quadros. Em seguida, a conversa gira em torno de Camões, que Telmo, talvez falando como porta-voz de Garrett, considera que foi menosprezado em vida pelos poderosos, como se fosse apenas um servo, sendo idolatrado apenas após a sua morte. (Camões já apareceu no início da peça, na fala inicial de Madalena). Retorna Manuel de Sousa, que revela a sua filha a identidade do cavaleiro representado no quadro, de forma respeitosa. Na Cena IV, Manuel informa que precisa ir a Lisboa, resolver negócios; Maria pede para ir junto, a fim de visitar sua tia. Madalena não gosta da idéia, ainda mais que eles partiriam numa sexta-feira, dia da Paixão de Cristo, o que para ela era presságio de algo grave.  Ela teme ficar sozinha e, por algum motivo, perder o marido, a quem ama. O irmão de Manuel, frei Jorge, fica com ela, fazendo-lhe companhia. Pouco após a partida do marido e da filha, Madalena recebe a visita de um romeiro, que diz estar voltando de uma peregrinação à Terra Santa, com passagem por Roma. O romeiro informa ter visitado o Santo Sepulcro, e que passou vinte anos prisioneiro na Palestina, portanto, desde a época da batalha de Alcácer-Quibir. Por fim, ele diz a Madalena que traz para ela uma mensagem de alguém que a quer muito bem, e que pediu para avisá-la que estava vivo. Madalena logo percebe tratar-se de seu marido, que julgava morto há muitos anos. Na peça fica apenas sugerido que D. João de Portugal e o romeiro são na verdade a mesma pessoa; quando frei Jorge pergunta o nome do romeiro, este, repetindo a fala de Ulisses na Odisséia, responde: “Ninguém”. (Há também um paralelo com a figura de Ulisses, vestido como mendingo, retornando a Ítaca, onde vê Penélope assediada por pretendentes, doze anos após a sua partida para a guerra de Tróia).          


ATO III

Manuel lamenta a sorte da filha, que será considerada bastarda, além de ficar órfã, uma vez que os pais, como penitência, ingressarão em ordens religiosas (e Manuel compara o hábito monástico a uma mortalha). Ele assume a culpa por toda a desgraça que recaiu em sua família. Maria, mesmo sem saber do ocorrido, apenas por ver o sofrimento da mãe, contrai tuberculose, expelindo sangue. Telmo encontra o romeiro, e, da conversa entre ambos, acontece a revelação da identidade de D. João de Portugal. Este, embora sinta vergonha e desonra pela traição da esposa, não faz escândalo e parte, para evitar os males que poderiam recair sobre ela, por compaixão ou respeito pela que amou outrora. Madalena, por sua vez, não aceita perder o marido a quem ama e põe em dúvida as palavras ditas pelo romeiro, para tentar salvar o seu casamento e a união da família; Manuel, porém, não volta atrás em sua decisão, dizendo que o amor entre eles é impossíve. Madalena abraça-se a uma cruz, temendo pela filha, e pergunta a Deus o que mais lhe será tirado, o que a sorte ainda lhe reserva. Na Cena X, acontece a ordenação monástica de Manuel e Madalena, já vestidos com hábitos religiosos. Maria intervém na cena, em estado de alienação, roupas brancas, desalinhadas, cabelos soltos, rosto macerado pela doença e olhar desvairado. Ela questiona: “Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”   Denunciando já saber a verdade sobre o primeiro marido da mãe, indaga: “Que me importa a mim com o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou ressuscite agora para me matar?... Mate-me, mate-me, se quer, mas deixe-me este pai, esta mãe que são meus”. Ela questiona o preconceito religioso que nega ser ela a filha legítima de seu pai e sua mãe, ao mesmo tempo em que anuncia a própria morte, pela dor da separação. A peça termina com a bênção do prior à menina, que encomenda a sua alma a Deus.

Nota 1: a personagem Maria, talvez a mais rica da peça, expressa talvez o pensamento de Garrett (na política, a defesa do nacionalismo, do patriotismo; nos costumes, a liberdade do amor).

Nota 2: há nessa obra um conflito entre o pensamento tradicional, conservador, católico, de um lado, e o pensamento liberal e revolucionário, de outro.


Comentários de Antônio Saraiva:

“A teoria do ‘drama’ (o novo gênero teatral ‘romântico’ que bania a distinção entre a tragédia e comédia), prenunciada no século XVIII, nomeadamente por Diderot, fora exuberantemente popularizada por Victor Hugo no prefácio de Cromwell (1827). Algumas características: multiplicidade da localização e alongamento do tempo, para permitir uma ação mais livre; recurso ao característico, local, histórica e psicologicamente; efeitos de contraste entre o grotesco e o sublime; diversidade dos tipos humanos, até nas suas formas patológicas e vulgares.”

Sobre as primeiras peças de Garrett, de conteúdo histórico-político, diz Saraiva: “Garrett pôs ao serviço deste conceito da missão do teatro uma arte notável do diálogo e do efeito cênico, uma inteligência lúcida, apoiada numa informação histórica que, então, se pode julgar considerável; mas não conseguiu inspirar sopro de vida a este conjunto de peças ditadas por um objetivo didático. Por isso nenhuma delas sobreviveu.”

“Noutro plano muito superior se recorta o Frei Luís de Sousa (1844), obra solitária não apenas na literatura portuguesa, e no teatro romântico em geral, mas até no próprio teatro garrettiano.”

Nesta obra, diz Saraiva, o autor português “pretendeu incluir uma lição cívica: o sentimento da independência, que a intervenção antidemocrática de ingleses e espanhóis na vida política portuguesa fazia então vibrar agudamente”.

“Mas estas intenções não impedem que a peça esteja centrada num drama familiar, íntimo, e atual no tempo de Garrett.”

Esta peça, segundo Saraiva, se aproxima da tragédia clássica mais do que do drama, pois “não apresenta cenas cômicas nem tipos grotescos ou simplesmente extravagantes”. O tempo (cerca de uma semana) e o lugar (dois solares e uma igreja contígua a uma delas, tudo em Almada) aproximam-se da concentração exigida pelo teatro clássico. A cena nuclear é, como recomendava Aristóteles, uma anagnórise (reconhecimento); e o pathos (aflição do protagonista) adensa-se num clímax (crescente precipitação fatal dos fatos), até a catástrofe.”

Saraiva comenta o prefácio que Garrett escreveu para a peça, onde ele se refere ao “terror” e à “piedade”, que são “dois elementos fundamentais da teoria aristotélica da tragédia”, relacionando depois Frei Luís de Sousa aos clássicos franceses e italianos (Racine, Corneille etc.) e às tragédias gregas.

Na peça de Garrett, “a crise dramática resulta assim da contradição entre a situação criada – a vida atual – e um passado incompatível com ela, que não renuncia aos seus direitos – um passado que também é vida. A contradição resolve-se pelo aniquilamento recíproco das posições contraditórias.”

“Como nas tragédias clássicas, o destino patético é desencadeado por uma única infração dos costumes consagrados.”

“O senso de destino exprimiria uma ânsia de expiar a culpa. Aliás, como veremos, o sentimento de culpa surge insistentemente na obra garrettiana, quanto a autoridades patriarcais ou religiosas (pais e clérigos), sobretudo na fase em que assiste à degradação do seu liberalismo ideal, convertido em ditadura cabralista do capitalismo latifundiário e financeiro.”

Saraiva observa que nesta peça há uma tensão entre, por um lado, a “reivindicação da liberdade de amar” e a “exigência de mudar o mundo”, e, de outro lado, “remorsos, o sentimento religioso de um fatalismo transcendente (com o Destino incógnito a falar, em numerosas coincidências, pela própria voz das personagens)”.


BOCAGE E O ARCADISMO



Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (1765-1805) foi o maior representante do arcadismo português. A sua infância foi infeliz. O pai foi preso quando ele tinha apenas seis anos de idade; a mãe faleceu quatro anos depois. Ingressou no seminário para ordenar-se padre, mas abandonou o projeto e com 16 anos alistou-se na Escola da Marinha Real, onde fez estudos para tornar-se guarda-marinha. Em 1786, embarcou como oficial da marinha para a Índia, fazendo escalas no Brasil e em Moçambique. Foi depois escalado para Damão, mas desertou em 1789, embarcando para Macau. Foi preso pela inquisição, e na cadeia traduziu poetas franceses e latinos. A década seguinte é a da sua maior produção literária e também o período de maior boêmia e vida de aventuras. Ainda em 1790 foi convidado e aderiu à Academia das Belas Letras ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudônimo Elmano Sadino. Pouco tempo depois já escrevia ferozes sátiras contra os confrades. Em 1791, foi publicada a 1.ª edição de seu livro  Rimas. Em 1797, foi preso novamente sob a alegação de ser “desordenado nos costumes”. Ficou aprisionado no Limoeiro até o final desse ano, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Aí ficou até 17 de fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Neri, depois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redator e tradutor. Sobre esse episódio, comenta Marisa Lajolo: “Acusado de heresia, foi implacavelmente perseguido, julgado e condenado, ficando na prisão por algum tempo. Ao recuperar a liberdade, graças à influência de amigos e com a promessa de converter-se, o poeta, já velho, abandonou totalmente sua antiga vida de boemia e zelou, até seus últimos momentos, por impor a seus contemporâneos uma imagem nova: a de homem arrependido, digno e exemplar chefe de família”. Bocage só saiu em liberdade no último dia de 1798. De 1799 a 1801 trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para traduzir. A partir de 1801, até à morte por aneurisma, aos 40 anos, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da travessa André Valente. A 15 de Setembro, data de nascimento do poeta, é feriado municipal em Setúbal.


Contexto histórico:

1750 D. José assume o trono português e o marquês de Pombal, a Secretaria do Estado.

1755 Um grande terremoto abala Lisboa; o marquês de Pombal, aproveitando-se da necessária reconstrução de Lisboa, assume plenos poderes.

1755-1777 Implantação das reformas pombalinas, com destaque para a laicização do ensino.

1777 Morte de D. José. Assume o trono a rainha D. Maria I. Pina Manique, nos anos seguintes, irá ganhando poderes e revogando as medidas pombalinas.

1789 Revolução Francesa.

1795 A rainha D. Maria I é declarada louca; sobe ao trono D. João, o príncipe regente.

A respeito dessa época, escreve Marisa Lajolo:

“O século XVIII termina na Europa com a vitória das Luzes. Mas encontra Lisboa com as luzes apagadas ou bruxuleantes em salas secretas. (...) Enquanto na França partiam as ondas vermelhas da Revolução, Portugal perpetuava o pantanal cinzento do absolutismo e das atitudes inquisitoriais da Mesa Censórea e dos calabouços destinados aos maçons e descontentes”. Após a ascensão do marquês de Pombal, acontecem algumas mudanças: “Pombal combateu ferozmente os jesuítas, expulsou-os do Império e transferiu o poder censóreo da Inquisição para o Estado. Laicizou o ensino, procurou estimular as atividades manufatureiras, reforçou o poder mercantil e o monopólio colonial luso através das companhias de comércio, ao mesmo tempo em que renovava a universidade e dava poder a letrados que comungavam com ele o credo racionalista. (...) “Mas Pombal não teve êxito ao romper a dependência diante dos britânicos. Portugal nunca dera ensejo à formação de uma burguesia minimamente poderosa, de ofícios, indústrias e cabedais financeiros que pudesse servir de base às reformas pombalinas. Ao contrário, a liderança na sociedade portuguesa continuava nas mãos de uma aristocracia cortesã, habituada ao dispêndio inútil, a quem Pombal não combateu com a devida eficácia, por não dispor de outros apoios políticos. Assim, a política econômica de Carvalho e Melo acabou por repetir práticas de um século atrás.” (...) “Por outro lado, o marquês não era tão ‘ilustrado’ quanto seus cortesãos queriam fazer crer. Através da Real Mesa Censória, manteve a proibição das obras filosóficas de Spinoza, Hobbes, Voltaire, Diderot e até mesmo da Nova Heloísa de Rousseau.”

Com a morte de D. José I, em 1777, e a ascensão da rainha D. Maria I ao trono, Pombal cai em desgraça. D. Maria I foi a primeira rainha reinante em Portugal. Seu primeiro ato como rainha, iniciando um período que ficou conhecido como a Viradeira, foi a demissão e exílio da corte do marquês de Pombal. Ela perseguiu a maçonaria e concedeu asilo a numerosos aristocratas franceses fugidos da Revolução Francesa. Em 5 de janeiro de 1785 promulgou um alvará impondo pesadas restrições à atividade industrial no Brasil. A rainha D. Maria, a Louca, tem a sua demência reconhecida oficialmente em 1795, quando o reinado passa para o príncipe-regente, o futuro D. João VI.

No plano internacional, conforme escreve Lajolo, “a Inglaterra continuava a dominar a diplomacia e os portos lusitanos, constrangidos a impedir, por exemplo, o acesso dos barcos dos Estados Unidos (...). D. Maria I integrou a aliança contra a França revolucionária, envolvendo-se nos combates da difícil campanha militar do Rossilhão, em 1792. Os gastos com o pobre exército português abalaram ainda mais as combalidas finanças do Estado: o ouro brasileiro se esgotara, mercê de uma exploração gulosa e irracional. E as finanças pouco a pouco se esvaíam, pois a Corte não parava de despender dinheiro em diversões fúteis”, como o gasto de 250 mil francos por mês só na manutenção da sala de ópera do palácio.

SOBRE A POESIA DE BOCAGE

Marisa Lajolo escreve:

“Analisando-se alguns aspectos da poesia oficial e não-censurada de Bocage, observa-se que boa parte dela é composta de longos poemas circunstanciais e desinteressantes, que celebram acontecimentos (nem sempre relevantes) do tempo do poeta. Neste rol incluem-se, por exemplo, poemas dedicados ao nascimento da rainha Maria Teresa (...) ou homenagens a esta ou àquela senhora fulana. Mas o convencionalismo desses poemas todos não se limita à sua carga bajulatória. São poemas convencionais também por seguirem de perto (...) as normas e regras da poesia da época. Assim, copiando as lições dos mestres gregos e latinos, já traduzidos e adaptados à sensibilidade da Europa setecentista, esses poemas usam e abusam da mitologia, ou, melhor dizendo, de expressões mitológicas (...). Esse código mitológico torna o Bocage destes versos quase ilegível para o público de hoje, absolutamente desabituado a tais referências olímpicas. (...) As alusões mitológicas nesta poesia do século 18 são impostas pela convenção poética e se transformam num código rígido, em clichês e estereótipos que não correspondem a nenhum sentir profundo.”

As referências mitológicas usadas por Bocage são amplamente usadas na poesia do Arcadismo, assim como a fuga das cidades (fugere urbem), o bucolismo (idealização da natureza e da vida pastoril), o epicurismo, os temas do amor e da solidão, a busca do prazer no momento presente (carpe diem, “aproveita o teu dia”), o racionalismo, a clareza, equilíbrio, harmonia e objetividade. “Nem sempre, porém, Bocage foi um perfeito árcade”, escreve Lajolo. Muitos críticos consideram-no um pré-romântico. O pré-romantismo de Bocage consiste numa primeira ruptura, numa primeira rebeldia às rígidas normas poéticas do Arcadismo. Este Bocage pré-romântico é o poeta que traz para a poesia o mundo pessoal e subjetivo da paixão amorosa, do sofrimento, da morte. É o poeta que confessa as paixões sem atenuá-las pela sua tradução em termos mitológicos. Para este Bocage pré-romântico, a natureza amena e delicada, as pastorinhas e ninfas, o repouso e a harmonia (...) cessam de existir, ou ao menos de merecerem poemas. À crença arcádica de que a Razão é a faculdade criadora por excelência, Bocage propõe escandalosamente o universo dos sentimentos e da paixão.”

Porém, esse Bocage pré-romântico ainda usa uma linguagem arcaica, rígida, com alusões mitológicas e vocabulário raro. “As frases continuam obedientes a uma métrica hirta e preestabelecida, que exige tônicas nesta ou naquela sílaba. O resultado, às vezes, é desastroso: é emoção demais para liberdade de menos.”

Já o “outro Bocage”, o censurado e satírico, “punha o dedo acusador nas chagas sociais de um país de aristocracia decadente, aliada a um clero igualmente corrupto (...). Outro tema freqüentíssimo nessa poesia censurada e proibida de Bocage é a exaltação do amor físico, que, inspirado no modelo natural, varre longe todo o platonismo fictício de uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido.”

Sobre a poesia de Bocage diz Antônio Saraiva:

“O Elmano Sadino da Nova Arcádia é já romântico por temperamento, apesar de muito vocabulário e muito alegorismo arcádicos e dos seus laivos de iluminismo. (...) A sua arte versificatória, sobretudo no soneto, tem tido muitos admiradores, entre os quais se destaca o parnasiano brasileiro Olavo Bilac. Todavia, esse encanto é um tanto monótono e fácil, e a sua orquestração verbal (...) soa muitas vezes a falso. O que o distingue melhor é a matéria psicológica que traz pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o horror do aniquilamento na morte. Tal egotismo percebe-se ainda na maneira abstrata e retórica com que, em nome da Razão, se revolta contra a humilhação da dependência e contra o despotismo; no gosto do fúnebre e do noturno, e nos clamores não menos retóricos de ciúme, de blasfêmia ou contrição. (...) Esse gosto já tão romântico do funéreo e tenebroso percorre grande parte da poesia de Bocage. Quero fartar o meu coração de horrores, desfecho de um dos sonetos mais característicos, compendia a sua imaginação sedenta do hórrido ou horrendo, de horríssonos furores: tempestades reais ou míticas, crimes lendários, históricos ou noticiados nas gazetas, pesadelos, agonias frenéticas, visões de antros ou abismos, minuciosas descrições de beberagens, esconjuros e outros bruxedos.”

A POESIA BARROCA EM PORTUGAL



O Concílio de Trento, realizado entre 1545-1563, em resposta ao avanço da Reforma Protestante na Europa, toma diversas decisões que terão consequências não apenas para a Igreja Católica, mas também para a cultura e a política europeias. Entre essas decisões, estão a reorganização da Inquisição (1542), a divulgação de um index de livros proibidos, a afirmação de que apenas a versão latina da Bíblia – a Vulgata de São Jerônimo – é legítima, a elaboração do catecismo romano e de um missal, a criação de novas ordens religiosas, como a Companhia de Jesus, para a realização de trabalho missionário nas novas colônias nas Américas. O espírito da Contra-Reforma impregnou profundamente a arte barroca, que surge em oposição ao humanismo e ao racionalismo do Renascimento.  Conforme escreve Frederico Barbosa:

“O barroco é contemporâneo, em Portugal, da dominação espanhola, iniciada em 1580 com a ascensão do rei Felipe II, de Espanha. Restaurada em 1640 por D. João IV, a frágil soberania portuguesa é consolidada, em grande parte, graças à riqueza proveniente do ouro extraído do Brasil, durante o reinado de D. João V (1706-1750). (...) A poesia portuguesa do período barroco, reunida em compilações do século XVIII, como a Fênix Renascida (1716), reflete a influência espanhola: predominam as imitações de Góngora e Quevedo. Alguns poemas cultistas recém-descobertos, no entanto, revelam uma poesia visual muito sofisticada e antecipatória de algumas experiências de vanguarda do século XX.” (A respeito da poesia visual do barroco português há dois interessantes livros de Ana Hatherly – A experiência do prodígio e A casa das musas).

Segundo Antonio Candido, o cultismo “repousa sobretudo no som e na forma, tendendo para uma verdadeira exaltação sensorial, enquanto favorece a fantasia na busca de imagens e sensações que ultrapassam as sugestões da realidade”. Exemplos de cultismo são as palavras raras, os neologismos e trocadilhos usados na poesia barroca. Já o conceptismo, segundo Candido, “apóia-se no significado da palavra, tendendo para o abusivo jogo de vocábulos e de raciocínio, para as agudezas ou sutilezas de pensamento, com transições bruscas ou associações inesperadas, além de seu misticismo ideológico. Ambos têm ascendência renascentista”. Além disso, predominam no barroco o uso das formas clássicas (o soneto, a canção, a ode etc.), a agudeza (sutileza de raciocínio), o uso de antíteses, paradoxos, metáforas e alegorias (a alegoria pode ser definida como a construção do pensamento por meio de imagens ou metáforas). Conforme a Arte poética de Horácio, seguida pelos poetas clássicos e barrocos, o poeta deveria ter engenho (talento) e arte (domínio técnico) e conciliar o aspecto lúdico com o ético ou filosófico: “instruir e deleitar”. Quanto à temática, além das composições de caráter moral, religioso ou de circunstância (poemas em homenagem a reis, nobres ou prelados), havia poemas satíricos e mesmo eróticos (caso do poeta brasileiro Gregório de Matos). Como exemplos do barroco literário português, citamos um soneto de D. Tomás de Noronha e um poema de Antônio Serrão de Castro:

PRAGAS SE CHORAR MAIS POR UMA DAMA CRUEL

Não sossegue eu mais que um bonifrate,
De urina sobre mim se vase um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me dêm água em açafate.

Se jogar o xadrês, me dêm um mate,
E jogando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate,

Os licores que beba sejam mornos,
Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,

E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.

(Soneto de D. Tomás de Noronha, século XVI.)


A UMA DAMA QUE DESMAIOU
DE VER UMA CAVEIRA

Mote:

Já fui flor, já fui bonina,
Agora estou desta sorte,
Fui o retrato da vida
Agora sou o da morte.


Glosa:

Se desmaias de me ver,
Eu também de ver-te a ti,
Pois qual tu te ves me vi,
E qual me ves has-de ser;
Esta caveira has-de ter,
Se te imaginas divina,
Que eu também quando menina
Fui um sol, fui uma aurora,
E se sou caveira agora,
Já fui flor, já fui bonina.

Se me viras Primavera,
Sendo uma inveja de flores,
Então mais te dera horrores,
Então alento te dera;
Secou esta verde hera
Um cruel sopro da morte,
Porque com seu braço forte
Tudo prosta, tudo humilha,
Que eu ontem fui maravilha,
Agora estou desta sorte.

Ver-me ontem era ventura,
Hoje ver-me horrores dou;
Hoje uma caveira sou,
Ontem flor da fermosura.
Foi tal a minha pintura,
Tão valente e tão subida,
Tão forte e tão presumida,
Tão corada, tão fermosa,
Que soberba e vangloriosa
Fui o retrato da vida.

Acabou-se este portento,
Já este sol se eclipsou,
Já esta flor se murchou,
Já se acabou este alento.
Como a vida foi um vento,
Acabou-se de tal sorte,
Que sendo com meu ornato
Ontem da vida retrato,
Agora sou o da morte.

(Poema de António Serrão de Castro, 1610-1685.)