Cesário Verde
nasceu em 1855, em Lisboa. O
pai era comerciante e também se dedicou à agricultura, na granja de Linda-a-Pastora
(que inspira o poema Nós). O menino
começa a trabalhar como empregado do pai numa loja de ferragens. Ao longo da
vida, irá se dedicar ao trabalho no comércio, inclusive na área de exportações.
Aos 18 anos, matricula-se no curso superior em Letras, que não conclui. Conhece
Silva Pinto, que torna-se seu amigo e publicaria, postumamente, o Livro de Cesário Verde. Em 1873, com 19
anos de idade, publica os primeiros poemas em jornais da época. Causa polêmica
o seu poema Esplêndida. Apaixona-se pela
atriz Tomásia Veloso, que o despreza; por causa dela, envolve-se numa briga com
o amante da atriz, Oliveira Grosso, que espanca o poeta. Teófilo Braga publica
uma antologia de novos autores portugueses, em 1877, sem fazer nenhuma menção a
Cesário Verde. Em 1880, publica, aos 25 anos de idade, o Sentimento de um Ocidental, poema comemorativo do bicentenário de
Camões que é ignorado pela crítica. Em 1884, contrai tuberculose, falecendo
dois anos depois, aos 31 anos de idade. A primeira edição do Livro de Cesário Verde é publicada em
1887, com tiragem de 200 exemplares.
Maria
Aparecida Paschoalin assim comenta o contexto histórico do autor:
“Portugal, a
partir de 1851, passava a viver o período da Regeneração (caracterizado pela
alternância de dois partidos no poder durante 40 anos), que foi efetivamente o
período do liberalismo. Desde 1820, com a Revolução Liberal, o que se
presenciou foi a luta constante entre conservadores e liberais. E esses, muitas
vezes, com a bandeira da revolução, revelavam paradoxalmente princípios e
objetivos pouco liberalizantes. Instala-se uma monarquia constitucional, que
restringe o Poder Moderador exercido pelo rei. O governo da Regeneração
realizou-se após um golpe de Estado (o duque de Saldanha assume o poder apoiado
pelos liberais e conservadores), reunindo as forças anti-absolutistas, o que implica
o fracasso definitivo dos partidários do absolutismo miguelista (adeptos de Dom
Miguel, que, apoiado pela Santa Aliança européia, representava o absolutismo). A
reconciliação provisória entre liberais e conservadores, que acaba por gerar a
alternância de dois partidos no poder, cria a rotatividade entre progressistas
e conservadores, imitando-se o modelo político e econômico que era a
Inglaterra: é a experiência parlamentar. Utilizando-se de empréstimos no exterior,
Portugal entra na fase de construção de milhares de quilômetros de estradas de
ferro, dezenas de pontes, valorizando a política do transporte. A incipiente
indústria nacional é relegada, o que privilegia a Inglaterra, e sua penetração
imperialista se torna inevitável. O caminho de ferro passa a levar às aldeias
portuguesas a produção mais barata e trazer para o centro urbano o homem rural
que, com a criação de novas fábricas, vem procurar melhores condições de
trabalho, ou pelo menos salários que, por piores que sejam, são recebidos
regularmente. As áreas rurais se esvaziam e a população da cidade duplica.
Enquanto a agricultura carece de investimento, os lucros conseguidos na
indústria são na sua maioria investidos em prédios urbanos, desenvolvendo-se
assim a construção civil. À medida que as contradições se acentuam — entre campo
e cidade — e que na cidade mais se evidenciam as desigualdades sociais, surgem
manifestações de descontentamento social. Em 1870 é fundado o Partido
Socialista e em 1876 o Partido Republicano, que se a princípio têm um projeto
quase comum, acabam por se diferenciar: um de tendência socialista-cooperativista
e outro de tendência reformista. As cidades fechadas passam a ser centros
urbanos: as atividades comercial e industrial geram um movimento vivo. Os comboios,
o telégrafo e os jornais enchem a cidade de nova população, diferentes hábitos
e notícias. A caleche, a carruagem e carros puxados por burros são os
transportes urbanos que interrompem o isolamento das famílias. Com superpopulação,
sem saneamento básico, sem habitações adequadas na cidade, a população vinda da
zona rural à procura de trabalho passa a contrair cólera e tifo, ou doenças
tipicamente urbanas, como a meningite, pneumonia, tuberculose etc. A mendicância
agrava-se. (...) A exploração da mão-de-obra trabalhadora — principalmente
menores e mulheres — é escandalosa.”
CONTEXTO
LITERÁRIO:
Maria
Aparecida Paschoalin escreve:
“Os escritores
passam a escrever sobre a realidade. É um tempo em que o sonho de amor,
individual, cede lugar ao sonho coletivo, de igualdade humana e social. Surge a
literatura realista que fala do homem com suas implicações políticas,
econômicas e psicológicas. Documenta-se o real concreto, o que até então nunca
fora tomado como matéria literária: a miséria, os anseios humanos de libertação
social. Na história da literatura portuguesa e de Portugal, ocupou lugar de
realce a Geração de 70, constituída por um grupo notável de jovens
intelectuais, a maioria formada na Universidade de Coimbra. Essa geração se
inicia e se conscientiza como grupo em 1865, na chamada Questão Coimbrã — ou
‘do bom senso e do bom gosto’ —, que colocou jovens intelectuais, liderados por
Antero de Quental, contra os valores sociais e literários representados por
Castilho, autor ultra-romântico, de um sentimentalismo exagerado. O grupo se
firma em 1871, em Lisboa, quando os mais ativos representantes organizam um ciclo
de conferências no cassino Lisbonense. Tais conferências abrangem os aspectos
modernos da literatura, história, religião, educação etc., que se convertem, é
claro, em críticas e ataques à ordem social e política existente. A proibição
das conferências pelo governo mostra a pouca solidez do liberalismo lusitano.
Aliás, mostra também um sintoma do clima da Europa que, conservadoramente, se
retrai após a Comuna de Paris, em 1871. Um dos fatos importantes é que esse
grupo reagiu contra a monotonia da geração romântica do ‘mal do século’,
portanto, contra a cultura pequeno-burguesa em formação, e estremeceu a cultura
portuguesa ao colocar em discussão essa cultura, ou toda a história portuguesa,
desde suas origens, principalmente o período das descobertas. Questiona-se o
que até então não fora questionado: a gloriosa história portuguesa fora
realmente gloriosa? A quem serviram os descobrimentos? Por essa razão, as
Conferências Democráticas do Cassino abrangem temas que vão da arte à política.
Entendiam que a literatura — aliás, a arte em geral — não deveria falsear a
realidade e a época histórica.”
AVALIAÇÃO ESTÉTICA:
“Cesário Verde
foi uma ponte entre o Realismo do século XIX e a moderna literatura portuguesa.
Ele foi o primeiro poeta português a mostrar que na beleza poética também estão
contidos o grotesco, a miséria, a prostituição, seres humanos reduzidos a
animais. E que tudo isso constitui — infelizmente — a verdadeira poesia do
cotidiano. São comuns em sua obra versos que descrevem sensações — visuais,
auditivas, táteis, olfativas e gustativas. O poeta é intensamente atraído pela cidade.
Não a rejeita. Mas, atraído, é sensorialmente abafado por ela. (...) A quase
totalidade da obra cesárica compreende poemas que são pequenas narrativas,
registros de monólogos íntimos de um autor-transeunte, que caminha pelas ruas
de Lisboa. Poeta sensorial e, por excelência, visual, Cesário é um artista
plástico. Sua poesia é traçada com linhas e cores, como se cada poema fosse um
quadro. Em cada estrofe, bloco de versos (passos) do poeta-transeunte,
sobressai o uso do substantivo e da frase nominal: o verbo perde sua
importância e há uma aglutinação de substantivos (...) predominantemente
acompanhados por adjetivos ou locuções adjetivas. Vivenciando o fluxo e o refluxo
do Romantismo, fustiga-o a princípio a reação satânica-católica de Baudelaire a
esse mesmo Romantismo (cerne de todos os ismos até o final do século XIX);
colhe, posteriormente — ou, diria melhor, simultaneamente — o impacto renovador
do impressionismo nas artes plásticas e antevê o Expressionismo da viragem do
século.” (Ricardo Daunt)
No poema O Sentimento de um Ocidental, Cesário
revela um “lirismo antideclamatório” (idem). Trata-se, segundo Daunt, de “uma
viagem infernal pelas ruas de Lisboa até o alvorecer, fornecendo-nos de corpo
inteiro o herói camoniano em sua aventura solitária, por vezes medíocre, mas
valorosa, e que sem contar com a força do destino caminha na tentativa de
transcender o mundo fragmentário para atingir o ideal, o atemporal, a perfeição
do qual é fabricado com as armas do imaginário”. (idem).
“Atraído (...)
pelo cotidiano, afasta-se de qualquer intuito de fazer do poema um território
filosófico, como Antero de Quental. Sua obra atesta a presença de um sujeito
lírico que deambula pelo mundo urbano da civilização industrial capturando os
variegados recortes físicos e os múltiplos estímulos sensoriais da cidade
labiríntica” (idem).
CESÁRIO VERDE, O ANJO TORTO DE LISBOA
Claudio Daniel
Cesário Verde (1855-1886) é contemporâneo do
processo de transformação de Portugal, com o surto industrial e a expansão
urbana, no final do século XIX, e sua poesia reflete essa mudança de paisagem,
incorporando a temática social com o enfoque crítico do carbonário, do tribuno
da plebe. Ele é o poeta dos operários, das lavadeiras, dos mendigos que
tropeçam na sarjeta ante a marcha acelerada do veículo de um magistrado. No
entanto, o seu engajamento, sua ética de solidariedade, nunca prescindiu do
compromisso estético, numa linha paralela às concepções de Maiakovski. O poeta
português antecipou a própria irreverência futurista em versos como estes:
“descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados” (de Num bairro moderno) e “Eu
desfaria o Sol como desfaço/ as bolas de sabão das criancinhas” (de Arrojos). Herdeiro de uma
orgulhosa tradição nacional, a dos argonautas lusitanos, como Vasco da Gama, o
poeta não poupou de sua língua ferina nem o próprio oceano: “Eu temo muito o
mar, o mar enorme,/ Solene, enraivecido, turbulento,/ Erguido em vagalhões,
rugindo ao vento;/ O mar sublime, o mar que nunca dorme./ (...) Eu rindo, sem
cuidados, simplesmente,/ Escarro, com desdém, no grande mar!” (de Heroísmos).
A rima, na poesia de Cesário Verde, nunca é banal, rotineira, mas incisiva,
contundente; ele obtém efeitos de ironia, de sensualidade, de comoção, dentro
de sutis jogos metalinguísticos. Em sua oficina, o poeta obtém rimas entre
nomes próprios e substantivos comuns (Marta / carta); entre palavras do idioma
português e estrangeirismos (contrarie / coterie);
entre termos científicos e do léxico comum (aneurisma / abisma); entre
vocábulos de diferentes números de sílabas (relógio / martirológio), isso para
ficarmos em poucos exemplos. O uso de adjetivos justapostos, em seus poemas,
não é acessório, cosmético, mas, na maioria das vezes, cumpre uma função
crítica, de caricatura, via linguagem, como em Ecos de Realismo — Manias:
O mundo é uma velha cena ensangüentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, — hoje uma ossada —,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa.
Na sujeição canina mais submissa
Levava na tremente mão nervosa
O livro com que a amante ia ouvir missa!
O pessimismo de Cesário Verde, que encontra
sua força de expressão no humor negro, nos cromos metafóricos, no grau
superlativo dos adjetivos, recorda o espírito e o estilo analítico-cirúrgico do
brasileiro Augusto dos Anjos. A visada crítica do poeta português, porém,
martelo nietzscheano para golpear todos os valores, é ditada menos pelo tédio,
pelo spleen do estar no mundo que por
um sentimento de asco ante a degradação social e de espírito.
Perfis do eterno feminino
Em sua poesia amorosa, porém, o bardo inconformista faz-se cantor romântico, blues singer da última flor do lácio, em versos
como: “Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas/ Em que ela esconde as lágrimas
singelas” e “Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,/ E faria que a noite fosse
eterna” (de Responso).
No mesmo poema, o autor define sua amada na melhor tradição byroniana: “É loura
como as doces escocesas,/ Duma beleza ideal, quase indecisa,/ Circunda-se de
luto e tristezas/ E excede a melancólica Artemisa”. E conclui, na última
estrofe: “Uníssemos, nós dois, as nossas covas,/ Ó doce castelã das minhas
trovas!”. Esta associação da mulher sonhada com a noite, a melancolia e a morte
encontra-se em autores do primeiro Romantismo, nas heroínas pálidas de Poe, nas
damas dramáticas de romances sentimentais e óperas de boulevard. A lírica de
Cesário Verde, no entanto, revela outros perfis do eterno feminino: o arquétipo
da mulher pura, sincera, apaixonada, que o poeta deve proteger com ternura, e
sua contraparte, a imagem de Lilith-Astarté, de uma Madalena lúbrica e
impenitente, que nele desperta ao mesmo tempo o sentimento erótico, o desprezo
e, sobretudo, o medo. Diz o autor, em A
Forca: “Ó áridas Messalinas/ não entreis no santuário,/ transformareis em
ruínas/ o meu imenso sacrário!/ Oh! A deusa das doçuras,/ a mulher! eu a
contemplo!/ Vós tendes almas impuras,/ não me profaneis o templo!”.
Curiosamente, na temática erótica, ressurgem, na poesia do rapsodo
anticlerical, símbolos e referências do catolicismo, a condenar aos círculos
infernais a mulher-só-carne. Em outro poema, Lúbrica,
o poeta entrega os pontos, e deixa-se enfeitiçar pelas investidas da amiga
luxuriosa:
Mandaste-me dizer
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cena de rapazes.
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
(...)
As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
Mulher que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!
O poeta dissidente
O poeta moderno, despido de aura, encharcado
pela lama e entregue às vicissitudes da sociedade de consumo é um tema que já
aparece em Baudelaire, inspirando a reflexão crítica de Walther Benjamin. Para
Cesário Verde, na civilização burguesa, o artista é o dissidente rebelionário,
rejeitado pelo mundo que rejeita, sendo natural a solidariedade por todos os
oprimidos, pelos humilhados, que, acreditava-se, um dia fariam a revolução. No
poema Contrariedades, ele nos diz:
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Neste poema, o autor compara a situação dos excluídos, dos miseráveis, à do
poeta, também ele um marginal, um anjo torto,gauche na vida. Aqui, ele utiliza técnicas de
corte de cena e de montagem que recordam a linguagem do cinema e das histórias em quadrinhos. A
narrativa é dinâmica, com planos sucessivos de imagens, e a fala do poeta,
direta, enfática, coloquial, reforça o efeito comunicativo do poema. Mais
adiante, o autor diz:
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos.
E a tísica? Fechada e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Não se pode esquecer que o poeta é contemporâneo do realismo e do naturalismo,
correntes estéticas que buscavam conciliar o humanismo e a defesa de valores
democráticos a uma visão mecanicista, cientificista de mundo, cuja expressão
teórica foi Taine. E Cesário Verde, como um pintor naturalista, nos mostra
“cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha” e “condados
mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor!
Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações!” (de Nós).
O poema que melhor expressa o pacto de Cesário Verde em retratar a verdade, sem
maquilagem, é O Sentimento
dum Ocidental A peça, dividida
em quatro partes (I - “Ave-Maria”; II - “Noite Fechada”; III - “Ao Gás”; IV -
“Horas Mortas”) foi publicada pela primeira vez em 1880, numa edição
comemorativa do Jornal de Viagens, que homenageava Camões. Este é o poema de
ambiente mais urbano, mais moderno, do poeta; por ele trafegam dentistas e
carpinteiros, operários e floristas, carros de aluguel e navios mercantes, numa
paisagem de edifícios e vias-férreas, hospitais, cadeias e praças. É uma elegia
às ruas de Lisboa, essa Londres em caricatura, emulsão de capitalismo tardio e
cristandade, que o poeta retratou com as verdes tintas do sarcasmo. Logo na
primeira parte do poema, o autor nos dá um exemplo de sua fanopéia concisa,
fragmentária: “O céu parece baixo e de neblina/ O gás extravasado enjoa-me,
perturba;/ E os edifícios, com as chaminés, e a turba/ Toldam-se duma cor
monótona e londrina”.
O poema recorda, por vezes, os cenários dos romances de Zola e das crônicas de
jornal; mas a síntese verbal, a linguagem dinâmica, substantiva, as metáforas
ferinas, os efeitos sonoros e construções insólitas (“E sujos, sem ladrar,
ósseos, febris, errantes,/ Amareladamente...”) revelam o artesão apurado,
mestre em sua arte, feiticeiro da orquestração das palavras. O Sentimento dum Ocidental é o documento doloroso de uma época da
cultura européia, a do desenvolvimento fabril, com o inevitável custo social em
miséria e sofrimento; este é o cântico noturno da gênese do século XX.
Cesário Verde faleceu em 1886, em Lisboa, aos 31 anos, vítima de tuberculose.
Seus poemas, reunidos postumamente, foram publicados por seu amigo Silva Pinto
sob o título de O Livro de Cesário
Verde. Essa edição, no entanto, sofreu a ação de rapinagem do
editor-censor, que excluiu muitas peças do volume, considerando-as “imorais”.
Em edições seguintes, entre 1901 e 1926, os poemas excluídos foram sendo
descobertos e publicados, até a versão definitiva, de Joel Serra, que conta 41
poemas.
(Artigo que publiquei, em 1999, no Suplemento Literário de Minas Gerais)