O período renascentista foi caracterizado pela expansão da navegação, comércio e sistema bancário, crescimento das cidades, enriquecimento da burguesia, declínio do poder da Igreja e surgimento dos estados nacionais, bem como pelo cultivo da alegria, luxo e prazer nas cortes, em contraste com o rigor medieval. Burgueses e nobres buscam a satisfação material. O homem é colocado no centro do universo. Novos estudos e descobertas acontecem na medicina, astronomia, navegação, nas artes e outros campos do saber. Galileu desenvolve o telescópio e questiona o heliocentrismo; Piero della Francesca cria a perspectiva na pintura. “Criaram-se instrumentos mais adequados para a navegação, observação astronômica e medição do tempo. Os novos conhecimentos e técnicas puderam ser divulgados graças ao aperfeiçoamento do papel e dos métodos de impressão. Com a possibilidade de reprodução em maior número e com maior rapidez, cresceu a circulação de livros”, escrevem Izeti Fragata Torralvo e Carlos Cortez Minchillo. No Renascimento, também chamado de Humanismo, acontece também a revalorização da cultura greco-romana, a partir da tradução de textos clássicos de arte, filosofia e ciência da Antiguidade, de autores como Aristóteles, Platão, Homero, Virgílio. “A obra desses filósofos e artistas, produzida antes da era cristã, evidenciava a grandeza humana, revelando o poder do homem de gerar idéias e praticar importantes ações. Dessa visão gloriosa originou-se uma concepção humanista que se reflete na produção artística do Renascimento”, afirmam Torralvo e Minchillo.
Segundo Geir
Campos, “o Renascimento era, a bem dizer, uma volta ao homem, depois do longo e
sombrio túnel da Idade Média. Esse formidável surto de confiança no ser humano
tinha uma série de razões práticas: a invenção da bússola, aplicada no Ocidente
desde 1300, a
declinação magnética (fundamental para a navegação oceânica) verificada por
Colombo em 1490, a
fabricação de armas de fogo com mecha em 1400 e com espoleta em 1500, os vidros
de aumento combinados em lunetas no século XIV, a invenção da gravura em fins
desse mesmo século, a invenção da prensa com tipos móveis em 1440, a industrialização do
ferro em altos fornos, as novas formulações da astronomia e da trigonometria, as
grandes navegações e os descobrimentos marítimos, o sistema heliocêntrico de
Copérnico, a reforma da cronologia juliana por Gregório XIII, o interesse
crescente pela natureza e pela pessoa humana – tudo isso dava lugar a um clima
de euforia revolucionário.”
É nesse
contexto histórico e cultural que se desenvolve a obra do maior poeta português
de todos os tempos: Luís Vaz de Camões.
A lírica de
Camões – composta de sonetos, canções, odes, sextinas, poemas em redondilhas,
em estilo trovadoresco – recebeu forte influência do doce estilo novo,
tendência literária surgida na Itália, no século XVI, e trazida a Portugal em
1527 por Francisco Sá de Miranda. O gênero poético mais praticado pelos poetas
do doce estilo novo era o soneto petrarquiano, dividido em dois quartetos e
dois tercetos, com rimas distribuídas na sequência A-B-A-B A-B-A-B C–D–C-C–D e
métrica decassilábica.
Sextina: poema composto em seis
estrofes, de seis versos cada.
Oitava: estrofe de oito versos.
Écloga: poesia pastoril dialogada.
Elegia: poema de tema triste ou
relacionado à morte.
Ode: composição de caráter elogioso,
dedicado a deuses, reis, heróis ou atletas.
Conforme
escreve Geir Campos:
“Nas Rimas, editadas postumamente em 1595, o
poeta praticou a ‘medida nova’, escrevendo textos de nítida influência
italiana, bem nos moldes renascentistas; isto é, adotou frequentemente a
estrutura do soneto, o verso decassílabo, a postura racional e filosófica
(...). Até mesmo o sentimento amoroso — tema comum na lírica renascentista — é
submetido a uma compreensão lógica por meio da qual se busca uma verdade
genérica, universal. (...) Essa atitude reforça o compromisso com a especulação
racional, típica do homem renascentista. (...) Camões interpreta suas
experiências amorosas de modo idealizante, não se distanciando das concepções
neoplatônicas comuns aos homens cultos do seu tempo. Valoriza-se o impulso
amoroso em uma dimensão de pureza, de imaterialidade do pensamento, alheio a
interesses e desejos sensuais.”
A esse
respeito, escreve Ivan Teixeira:
“Camões
entende o amor como um meio para o aprimoramento do caráter, cuja perfeição, na
época, exigia também o convívio com as armas. Saber amar era uma delicada
virtude do Renascimento, virtude transformada em disciplina filosófica. A sua
prática aproximava o homem de Deus, na medida em que apurava o conhecimento da
Beleza, projeção máxima do esplendor divino. O amor em Camões confunde-se com o
logos, isto é, só atinge plena existência mediante a expressão verbal. Camões
não se preocupa propriamente em amar,
no sentido corriqueiro de posse da amada; está mais interessado em falar do amor.
As
contradições amorosas não são as únicas analisadas na obra camoniana. São
também tematizados os dilemas humanos, a sensação de impotência diante do
destino. Cria-se um universo de incertezas e desestabiliza-se a sensibilidade
do poeta, que passa com freqüência a se revelar melancólico, depressivo.
O poeta se
debate na tentativa de entender os opostos inconciliáveis, como a justiça e a
injustiça, o eterno e o efêmero, o incerto e o previsível. No nível da
linguagem, verifica-se a constância das antíteses, dos paradoxos. Tais temas e
recursos estilísticos antecipam características do Barroco (século XVII).”
Principais temas da poesia lírica de Camões:
— instabilidade
dos sentimentos e da realidade
— ideal de
perfeição, física e moral
— desconcerto
do mundo
— amor
idealizado
— perda da
amada
— o próprio
trabalho poético
A épica camoniana
Diz o poeta e
ensaísta norte-americano Ezra Pound: “Os Lusíadas
são, de acordo com Hallam, ‘a primeira tentativa bem-sucedida na Europa moderna
de construir um poema épico sobre o modelo antigo’.” O tema é adequado ao
tempo; é a viagem de Vasco da Gama, com interpolações da história de Portugal.
Essa viagem foi feita em 1497-99. Camões nasceu em 1524 e Os Lusíadas foram publicados em Lisboa em 1572. Camões tem
entusiasmo suficiente para escrever uma epopéia em dez livros sem se deter uma
só vez para qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens do verso.
(...) Os Lusíadas têm mais valor que
um romance histórico: eles nos dão o tom do pensamento da época.”
Ivan Teixeira escreve
a respeito da poesia épica:
“A epopéia era
a forma poética mais importante nos tempos heróicos da Grécia homérica, mais ou
menos entre os séculos XII e VIII antes de Cristo. (...) O verso hexâmetro
funcionava esplendidamente para o registro das façanhas e das lendas do homem
grego. (...) Os cantos homéricos exaltavam a astúcia, a força, a coragem, a
amizade, a hospitalidade, a obediência aos deuses e a fidelidade aos reis. Nos
combates ou nas aventuras, venciam as pessoas de coração mais forte, porque
estas eram as preferidas dos deuses. Sendo longas narrativas de exaltação do
cumprimento do dever cívico e religioso, os poemas homéricos vinculavam-se
estreitamente aos interesses e à sensibilidade de então, porque redimensionavam
artisticamente as guerras, as viagens, os mitos e as lendas do povo, pondo em
evidência suas crenças e seus valores.”
Os Lusíadas, de Camões, “aproximam-se
mais da Eneida que dos poemas
homéricos não só do ponto de vista da importância de um sobre o outro, mas também
do ponto de vista da história de sua redação. Tal como Virgílio, Camões compôs
sua epopéia com o propósito político de legitimar pelas letras a história portuguesa,
desde suas origens míticas na Idade Média até a expansão mercantilista no
Renascimento, dando ênfase à descoberta do caminho marítimo para a Índia,
levada a efeito por Vasco da Gama entre 1497 e 1499” .
“Camões
embarcou para o Oriente, onde viveu quase vinte anos, viajando de um lugar para
outro, a serviço do exército português. (...) Boa parte de Os Lusíadas foi escrita em Goa. O resto foi sendo composto ao sabor das
viagens, pelos lugares em que o poeta passava, em sua agitada vida de soldado e
de aventureiro. É célebre a lenda de que, por pobreza, escreveu trechos dos Lusíadas numa gruta de Macau, na China,
em péssimas condições materiais. O fato de o maior poema da língua ter sido
parcialmente escrito no Oriente põe em destaque o internacionalismo de Portugal
no século XVI. Por outro lado, revela o aspecto verdadeiramente renascentista da vida
de Camões, o que impediu seu espírito de se limitar ao universo geográfico e
cultural da Europa. O poeta acreditava no discurso dominante da época: para ele,
a história portuguesa tinha uma missão civilizadora a cumprir no mundo, impondo
aos quatro cantos sua religião e sua doutrina política.”
Há nos Lusíadas “incríveis batalhas medievais,
saborosas interferências dos deuses pagãos no universo cristão, surpreendentes
incidentes da vida marítima: perigos, tempestades e outros fenômenos naturais,
o inventário da vida exótica do Oriente, a celebração do amor físico (...), a
versão poética de lendas pagãs”.
Na época, a
expansão européia do Cristianismo se confundia com o ideal da guerra santa. “Apesar
da exaltação da guerra, o poema de Camões apresenta diversas passagens que
conflitam com o gênero épico e se aproximam do gênero lírico, que põem em
relevo as ternuras do amor ou as incertezas do indivíduo.”
DIVISÃO INTERNA DO POEMA
Diz Ivan
Teixeira:
“As epopéias
antigas, inclusive a Eneida, possuíam
uma introdução formular, que se dividia em duas partes: a proposição e a
invocação. Quase sempre fundidas num só pensamento, essas partes continham o
anúncio do assunto e o pedido de inspiração às musas.”
“A essas duas
partes tradicionais, as epopéias renascentistas acrescentaram uma terceira: a
dedicatória, na qual se exaltavam as virtudes políticas, religiosas e
guerreiras do rei ou de um nobre importante, os quais retribuíam a gentileza
com a edição do trabalho e com alguma proteção financeira.”
“Depois da
dedicatória, iniciava-se a narrativa, arrematada por considerações morais
chamadas epílogo.”
DIVISÃO EXTERNA DO POEMA
Prossegue Ivan
Teixeira:
“Externamente,
Os Lusíadas dividem-se em 10 cantos,
os quais se subdividem em estrofes de oito versos decassílabos cada uma. Essas
estrofes chamam-se oitavas-rimas. Nos seis primeiros versos, as rimas são
alternadas; nos dois últimos, emparelhadas.”
Decassílabos heróicos (sexta e décima
sílabas) e sáficos (quarta, oitava e
décima sílabas).
“Os Lusíadas compõem-se de 1.102
estrofes, perfazendo um total de 8.816 versos.”
“Há diversos
narradores em Os Lusíadas , todos
dominados pelo espírito de celebração nacionalista. O mais importante deles é a
persona ou personagem épica, espécie
de entidade abstrata que nos conta a história. Trata-se de uma voz impessoal,
que se confunde com a de um poeta inspirado pelas musas.”
Outros
narradores do poema são Vasco da Gama e a ninfa que, durante o banquete na Ilha
dos Amores, prediz o futuro dos portugueses, incluindo o descobrimento do
Brasil.
Os navegantes
voltam a Lisboa dois anos após sua
partida.
“Pelo que
ficou exposto, pode-se concluir que há dois planos em Os Lusíadas : o plano
histórico, dominado pela crônica dos feitos que conduziram Portugal à condição
de grande nação européia, e o plano mítico, dominado pela presença dos deuses
da mitologia greco-latina.”
“O plano
mítico envolve sobretudo a presença de Vênus, deusa do amor, e a de Baco, deus
do vinho. Vênus protege os portugueses durante a viagem; Baco os atrapalha.”
“Essa ficção
mitológica” (o Concílio dos Deuses,
no Canto I) “tem tudo a ver com a estrutura artística do poema, porque indica
que sua narrativa oscilará entre o domínio de Marte (guerra, epopéia) e o de
Vênus (amor, lirismo), o que corresponde à dualidade de gêneros literários de
que se falou acima. Nesse sentido, o episódio (...), um dos mais belos do
poema, possui também função metalingüística, razão pela qual o poeta o colocou
bem no início da narrativa, a partir da estrofe 20 do primeiro canto.”
“Além disso,
há interferência dos mitos católicos, dos quais o exemplo mais consagrado é a
Batalha de Ourique, na qual o próprio Cristo teria auxiliado Afonso Henriques a
deter os árabes em seu avanço contra as terras cristãs.”
SOBRE A EPOPEIA
“Epopeia é a
narrativa em versos de uma estória com significação nacional e universal. (...)
Nesse sentido, Os Lusíadas, em vez de celebrarem as glórias portuguesas, celebram
antes o início das relações marítimas entre Ocidente e Oriente.”
“Embora
fundada na história das elites de um povo, a epopeia deve incorporar lendas,
mitos e tradições populares. Além disso, deve conter viagens, guerras e, no
mínimo, um banquete. A função do banquete na epopeia é servir de cenário para o
canto de um aedo, cujo conteúdo pode
ser a síntese de aventuras passadas ou a profecia de conquistas futuras. Em
ambos os casos, o aedo funciona como
narrador paralelo de matéria que não cabe na estória central da epopéia, mas
possui importância para sua significação geral.”
O poeta épico
deve “incorporar vocábulos correntes, vocábulos arcaicos, exóticos, vocábulos
latinos, vocábulos gregos. Além de observar a tradição, um grande épico deve
inventar palavras e propor usos imprevistos aos olhos dos gramáticos e das
forças conservadoras do idioma”.